Por Nina Fidelis
Retirado de Revista Fórum
Superlotação, condições precárias, falta de assistência de todo o tipo são características comuns a quase todos os presídios brasileiros. Segundo os últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional*, o Depen, são pouco mais de 473 mil pessoas presas no país, sendo 442 mil homens condenados a cumprir pena em um sistema que comporta apenas 278 mil: um déficit de mais de 160 mil vagas. Agora, imaginemos que toda essa estrutura foi construída para atender o universo masculino, sendo incapaz de responder às necessidades básicas da mulher. E, além disso, com uma defasagem de vagas proporcionalmente maior que a dos homens: 31 mil mulheres presas em estabelecimentos que têm capacidade para 16 mil vagas. É um cenário que beira a calamidade.
Segundo a Irmã Margareth, da coordenação estadual da Pastoral Carcerária e assessora nacional na área de saúde, nenhuma penitenciária ou cadeia pública foi construída tendo em vista a realidade das detentas. “Até mesmo a penitenciária de Sant’ana [o maior complexo prisional feminino da América Latina] foi construído para homens. Depois de algum tempo pintaram as paredes, mas nada estruturalmente foi modificado para receber as mulheres e eu não vejo esta possibilidade”, afirma.
Não somente a estrutura física do sistema penitenciário marca a vida das presas. A não garantia de direitos básicos como o da maternidade, de relações familiares, saúde e sexualidade, também não são assegurados na maioria significativa dos presídios femininos. Para Kenarik Boujikian Felippe, juíza de direito em São Paulo, cofundadora e secretária do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia, “o Judiciário não consegue fazer este recorte de gênero na questão criminal. E isso não somente no Poder Judiciário. É necessário enxergar esta diferença e apontar alguns indicadores que possam facilitar a criação de uma política pública que dê respostas a este diferencial”.
Dentro dos presídios, até mesmo o uniforme utilizado é o mesmo dos homens. E isso interfere diretamente na autoestima da mulher indicando que não há diferenças no tratamento, e que nem são consideradas suas particularidades. Mas elas sempre dão um jeito. Bordam, costuram, fazem crochê, e imprimem na calça bege ou amarela e na camiseta branca as suas características. Mas o uniforme está longe de ser o principal problema.
Uma das necessidades básicas que não é atendida pelo sistema penitenciário brasileiro é o direito à maternidade. “É urgente se construir prédios pensando nas necessidades femininas como, por exemplo, as mulheres grávidas e em processo de amamentação”, afirma a Irmã Margareth. A penitenciária de Sant’ana vem passando por algumas reformas desde 2001, quando se decidiu transformá-la em um presídio feminino. Porém, tais reformas nunca foram concluídas. Hoje, no caso das mulheres grávidas, segundo Margareth, as mães são encaminhadas, no nono mês de gravidez, a uma ala especial do Centro Hospitalar de São Paulo, antes chamado de Centro Hospitalar Criminológico, no centro de São Paulo. Por lá, ficam apenas seis meses em contato com os filhos, amamentando.
Passado o período da amamentação, chega o momento mais traumatizante para elas: a separação. Caso a presa tenha alguém da família com quem deixar a criança, o bebê vai para a mãe, tias, irmãs etc. Mas muitas mulheres não têm com quem deixar seus filhos, que são levados para instituições públicas. “Todas ficam apavoradas pensando no que pode acontecer com os bebês caso eles sejam encaminhados para a instituição. Pensam se vão ser adotados, bem tratados... E o momento da separação ainda é preparado de maneira muito inadequada”, conta Margareth. “A guarda da criança permanece da mãe, porém, infelizmente, muitas coisas podem acontecer nestes abrigos por conta da precariedade, pela falta de condições de atender às demandas.”
Nestes casos, juristas e militantes dos direitos humanos acreditam ser possível conciliar a pena e a maternidade com medidas alternativas. Segundo Kenarik, “as mulheres têm o direito à maternidade e a criança, a uma vida sadia. Temos que fazer isso se tornar real. Conheci a experiência de uma mulher que estava cumprindo uma pena alta, e que a juíza autorizou a sua saída para amamentar e depois voltar, já que o Estado não tem condições de deixar a criança em um lugar apropriado”.
O abandono
Além do abandono por parte do Estado, com a ausência de políticas públicas específicas, estas mulheres são abandonadas por suas famílias e por seus companheiros. Apenas 8% recebem visitas de namorados ou maridos, e 11% são visitadas pelo menos uma vez por mês por suas mães, filhos, irmãos e irmãs. A maioria nunca recebe visitas. O diretor do Depen, Airton Michels, conta que na época em que atuava como promotor na região metropolitana de Porto Alegre (RS), “quando um homem ia preso, as mulheres procuravam o Fórum para conseguir um advogado para cuidar dos direitos de seu companheiro. Quando uma mulher ia presa, o homem procurava o Fórum para que um advogado realizasse o divórcio. Isso define tudo. A mulher continua parceira. O homem, sua família e toda a sociedade não aceitam a mulher presa, que acaba pagando pena de forma bem mais severa que o homem”.
Além do abandono por parte do Estado, com a ausência de políticas públicas específicas, estas mulheres são abandonadas por suas famílias e por seus companheiros. Apenas 8% recebem visitas de namorados ou maridos, e 11% são visitadas pelo menos uma vez por mês por suas mães, filhos, irmãos e irmãs. A maioria nunca recebe visitas. O diretor do Depen, Airton Michels, conta que na época em que atuava como promotor na região metropolitana de Porto Alegre (RS), “quando um homem ia preso, as mulheres procuravam o Fórum para conseguir um advogado para cuidar dos direitos de seu companheiro. Quando uma mulher ia presa, o homem procurava o Fórum para que um advogado realizasse o divórcio. Isso define tudo. A mulher continua parceira. O homem, sua família e toda a sociedade não aceitam a mulher presa, que acaba pagando pena de forma bem mais severa que o homem”.
As filas em cadeias masculinas são quilométricas já às quatro horas da manhã, e as mulheres realizam uma verdadeira maratona para garantir a visita, a comida, os utensílios pessoais e de higiene para seus maridos e namorados (conferir reportagem publicada em Fórum nº 81). Além do carinho, do contato físico com alguém de fora da cadeia, as visitas são muito importantes por conta do envio de utensílios de extrema necessidade como sabonetes, xampus, papel higiênico e, no caso das mulheres, de cosméticos: creme hidratante, esmalte, batom, absorventes... Nem estes últimos são garantidos pelo Estado.
Teoricamente, também é de responsabilidade dos órgãos de administração penitenciária colocar o preso ou a presa nos estabelecimentos mais próximos de sua antiga moradia, permitindo assim que a família consiga manter as visitas e estabelecer as relações familiares com os detentos. Teoricamente...
A ausência da família e dos companheiros, e as relações com o mundo externo influenciam muito no cotidiano. Para a Irmã Margareth, “os homens conseguem arrumar outras namoradas, se desligam do mundo aqui fora, diferentemente das mulheres que muitas vezes são os pilares da estrutura familiar e lidam com isso lá dentro diariamente. Acabam entrando em depressão, ficam agressivas, tomam calmantes”. Por conta das situações de abandono, a depressão, além de outras doenças mentais e dermatológicas, pulmonares, ginecológicas e principalmente a tuberculose são muito comuns.
O tráfico e os crimes de bagatela
Nos últimos anos, o índice de mulheres presas só vem aumentando. Em dezembro de 2004, o número de detentas chegava a pouco mais de 18 mil; no mesmo mês, em 2009, já eram 31 mil. Em cinco anos, a população carcerária feminina aumentou mais de 70%.
Nos últimos anos, o índice de mulheres presas só vem aumentando. Em dezembro de 2004, o número de detentas chegava a pouco mais de 18 mil; no mesmo mês, em 2009, já eram 31 mil. Em cinco anos, a população carcerária feminina aumentou mais de 70%.
Grande parte dos delitos que leva as mulheres à prisão é o tráfico, como mulas**, e furtos de pequeno porte. Margareth conta casos de mulheres presas por roubo de chocolate, pão, queijo, muitas vezes para sustentar o vício ou alimentar uma família. Segundo ela, se existisse um processo judicial mais adequado para estes pequenos delitos, elas poderiam cumprir penas alternativas que não as privassem de sua liberdade.
Para Kenarik este aumento tem a ver com uma série de fatores, mas também com a crise econômica. “A leitura só pode ser feita se avaliarmos o que acontece fora dos muros. É real que as mulheres, cada vez mais, assumem o papel de chefia de famílias, com muitas responsabilidades. E a droga, por muitas vezes, acaba sendo uma fonte de renda”, aponta. Segundo ela, a questão do tráfico é algo que requer uma avaliação de conceito. “Tudo que a sociedade elege ou é do bem o é do mal. E isso acaba refletindo no sistema judicial. A imprensa também acaba tendo um papel perverso, pois sempre aplica discursos de encarceramento. E o tráfico é uma questão posta neste sentido. Mas algumas decisões começam a mostrar que é possível aplicar penas diferenciadas para os pequenos tráficos”.
Airton Michel concorda com a juíza. “Prender pessoas por estes pequenos delitos não tem dado resultado nenhum para a sociedade. A primeira coisa a se mudar é a lei de tóxicos. Tanto para os homens quanto para as mulheres”. Aproximadamente 20% dos homens são presos por tráfico de drogas no Brasil. No caso das mulheres, 50% são presas enquadradas neste delito e muitas caem junto com o marido ou namorado, às vezes pagando pelas práticas deles. Por isso também a ausência dos companheiros no dia da visita.
As visitas íntimas Um dos temas mais discutidos quando o assunto é penitenciária feminina é a proibição ou não das visitas íntimas. Na opinião de Airton, a prisão não pode privar a mulher do direito às visitas. “Isso é bárbaro. É um retrocesso civilizatório”, ressalta.
Segundo o Regimento Interno Padrão dos Estabelecimentos Prisionais do estado de São Paulo, as visitas íntimas são consideradas regalias aos presos, assim como a participação em festivais, a prática de esportes em horários fora dos normais, sessões de cinema, teatro, e outras atividades. Já a Resolução 1/99 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária estabelece o compromisso dos estabelecimentos em assegurar o direito à visita íntima em presídios de ambos os sexos. Isso inclui todas as condições para que esta aconteça, como por exemplo, um local específico. Mas ainda não há nenhuma lei que regulamente o assunto. Além disso, toda a rede de campanhas de prevenção às doenças e informativas sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres deve se estender aos presídios. Bem como todos os exames.
Estas visitas, nos presídios masculinos, são tidas com algo normal, mas sempre improvisadas. Em geral, os casais ficam na cela e tentam garantir o mínimo de privacidade com um lençol. Já nos presídios femininos, é proibida a permanência de homens na cela, o que dificulta ainda mais o “jeitinho” de burlar a regra, que tem como penalidade o castigo.
Na opinião da juíza Kenarik, a questão da visita íntima revela o caráter preconceituoso da sociedade em relação às mulheres. “Na verdade, este é um preconceito que existe com a mulher antes mesmo de ela ser presa. Uma coisa ideológica de não assumir que ela tem a sua sexualidade. Se fizermos um levantamento, a visita íntima sempre existiu em vários locais, de maneira formal ou não, mas não para as mulheres”, observa.
Confidências de uma ex-presidiária
Camila*** é mais uma mulher que aumenta as estatísticas deste enorme abandono. Sua história é semelhante à de muitas outras detentas. Aos 19 anos, foi presa junto com a mãe e o namorado por tráfico de drogas; 25 gramas de cocaína foram o suficiente. “A polícia entrou lá em casa e ele assumiu tudo. Eu não tinha nada a ver com aquilo. Muito menos a minha mãe. Mas a polícia não quis saber”, conta ela. “Chegaram [a polícia] a alegar que eu iria continuar fazendo os ‘corres’ para ele, caso ficasse na rua”.
Camila*** é mais uma mulher que aumenta as estatísticas deste enorme abandono. Sua história é semelhante à de muitas outras detentas. Aos 19 anos, foi presa junto com a mãe e o namorado por tráfico de drogas; 25 gramas de cocaína foram o suficiente. “A polícia entrou lá em casa e ele assumiu tudo. Eu não tinha nada a ver com aquilo. Muito menos a minha mãe. Mas a polícia não quis saber”, conta ela. “Chegaram [a polícia] a alegar que eu iria continuar fazendo os ‘corres’ para ele, caso ficasse na rua”.
Na época, Camila estava trabalhando de babá, tinha carteira assinada e até mesmo a sua empregadora foi depor a seu favor no julgamento. Nada disso mudou seu veredicto. Condenada, após 1 ano e 3 meses presa, ficou mais seis meses em regime fechado, passando para o regime semi-aberto, em que saía nos feriados. Permaneceu 2 anos e um mês presa e, durante este período, passou pelo presídio de São Bernardo, em Campinas, e pela cadeia pública feminina de Monte Mor.
“No primeiro dia pensei que não fosse aguentar, tive até uma hemorragia nervosa...”. Em Monte Mor, por exemplo, eram 230 presas onde cabiam apenas 30. Inclusive foram expedidos inúmeros pedidos de interdição desta cadeia, denunciada por superlotação. “Sempre dormiam umas três no mesmo colchão. Tinha que caber de qualquer jeito”, lembra. No São Bernardo não era muito diferente: 32 mulheres em uma cela em que cabiam doze.
Hoje, Camila enfrenta a rotina de milhares de mulheres que vão visitar seus companheiros. Ela e sua mãe foram soltas, mas o namorado, com 31 anos, permanece no cárcere. “Eu não recebia visitas. Uma vez por mês, um amigo da minha mãe ia levar algumas coisas pra gente com o dinheiro que a minha irmã mandava de outro estado. Mas homem mesmo não aguenta porta de cadeia não”, diz.
Assim como nos presídios masculinos, lá existem as divisões de tarefas, as responsabilidades e a obrigação de se cuidar, de se manter limpa. Toda vez que usar o banheiro tem de lavar, e cada uma tem de usar o seu próprio material de limpeza. “Lá dentro, mesmo que a gente não saiba quem é quem, ninguém fica sem nada, pois a gente acaba dividindo o que tem. As mulheres são solidárias”, assegura. Esta solidariedade se dá também em forma de troca de favores. Se a pessoa não tem algum mantimento de higiene, ela pode limpar a área da cama da companheira e receber o que precisa. “O Estado mesmo não ajuda em nada”, afirma indignada.
Com relação aos remédios receitados arbitrariamente, Camila afirma já ter tomado em duas ocasiões. “Qualquer problema que a gente tem eles querem que a gente tome remédio. Para eles o preso tem que morrer ou ficar louco, porque qualquer coisinha é tarja preta. Conheci muita gente que acabou indo para o hospital de loucos”.
As mulheres também passam por situações de violência por parte da polícia. Seja ela física ou moral. A história de mulheres que “saíam” com o carcereiro nas cadeias públicas em troca de favores é comum. Mas Camila lembra o dia em que a Tropa de Choque entrou no presídio. “Foi a pior coisa do mundo! Eles não gostam das lésbicas e batem mesmo, sem elas fazerem nada. E a gente também não pode fazer nada. Eles ficavam dizendo: ‘Não quer ser homem? Então apanha quem nem um’.”
A história de Camila com certeza ilustra a vida destas mulheres, com algumas diferenças. Foi presa junto com o namorado, ficou anos presa sem receber visitas, mas tinha a sua mãe como porto seguro, que cumpriu a pena, literalmente, ao seu lado. Hoje, curiosamente, depois de condenada e ter ficado presa por mais de dois anos, foi absolvida. Nem os advogados conseguem explicar essa brecha no sistema, e alegam nunca terem visto um caso assim. Mas Camila e sua mãe já entraram com um processo contra o Estado, que tramita na Justiça, por terem sido presas sem provas concretas de participação no crime.
“Quando saí, foi a melhor coisa do mundo. Olhar o céu, ver carro. As mínimas coisas do mundo a gente admira. Senti muita falta das estrelas, da lua, do sol, do vento batendo... Não tem nada melhor que a nossa liberdade, não tem dinheiro que pague”. Assim, Camila desfruta novamente de sua liberdade, mas sua saga no sistema penitenciário continua até que seu marido saia e eles possam criar o filho – de cinco meses – juntos.
*Os dados são os últimos disponibilizados pelo órgão e são referentes a dezembro de 2009.
** Mulas são pessoas (homens e mulheres) contratadas para transportar drogas. As mulheres são as mais cogitadas para este ‘serviço’.
*** Nome fictício para preservar sua identidade.
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