26 de agosto de 2009

Quem são elas?

"Em julho de 2004, a Justiça brasileira autorizou que mulheres grávidas de fetos sem cérebro interrompessem a gestação. Durante quatro meses, dezenas de mulheres foram amparadas por essa decisão e optaram pelo aborto. O filme conta a história de quatro dessas mulheres durante dois anos. Érica, Dulcinéia, Camila e Michele são mulheres muito diferentes unidas pelo acaso de uma maternidade interrompida. Protagonistas de suas próprias vidas, elas são as narradoras de suas escolhas em um filme que impressiona pela força e resignação diante do luto precoce."

Assista aqui o documentário Quem são elas:

24 de agosto de 2009

Autogestão

Michael Albert
Tradução: Raphael Amaral e Felipe Corrêa

...toda autoridade é completamente degradante. Ela degrada aqueles que a exercem e degrada aqueles que sofrem seus efeitos... Quando ela é usada com certa bondade, e acompanhada de prêmios e recompensas, ela é terrivelmente desmoralizante. As pessoas, nesse caso, são menos conscientes da horrível pressão que está sendo colocada sobre elas, então seguem ao longo de suas vidas em uma espécie de conforto rude, como animais domesticados, sem nunca perceber que estão provavelmente imaginando a opinião das outras pessoas, vivendo pelos padrões de outras pessoas, praticamente vestindo o que poderia se chamar de roupas de outras pessoas, e nunca sendo elas mesmas por um único momento.
-Oscar Wilde
Qualquer economia certamente envolve muitas decisões, desde as de longo alcance até as relativamente limitadas. Quem decide? Quanto cada agente deve participar nas decisões econômicas? Nós acreditamos que a resposta é que cada agente deve participar do processo de tomada de decisões, na mesma proporção que ele é afetado pelas conseqüências, ou o que nós chamamos de “autogestão”. Nós preferimos essa, ao invés das mais típicas respostas: que nós devemos ser a favor da “liberdade econômica” ou do direito de se fazer qualquer coisa que se queira com pessoas ou propriedades, ou para todos terem a mesma participação em todas as decisões econômicas o tempo todo, ou para se dar mais participação aos mais conhecidos ou bem sucedidos do que para aqueles que são menos conhecidos ou mal sucedidos. Qual é a coerência de preferirmos a autogestão como nosso objetivo na tomada de decisões?
Decisões
Um homem pode pescar com uma minhoca que se alimentou de um rei, e pode também comer o peixe que se alimentou dessa minhoca.
-Shakespeare
Minha noção de democracia é que, sob ela, o mais fraco deve ter as mesmas oportunidades que o mais forte... Nenhum país no mundo demonstra atualmente qualquer preocupação pela proteção dos oprimidos...
A verdadeira democracia não pode ser conduzida por vinte homens sentados ao centro. Ela deve ser conduzida desde baixo, pelas pessoas de todas as vilas.
-Gandhi
Imagine que um trabalhador, numa fábrica, tenha sua própria área de trabalho. Suponha também que ele queira colocar um quadro com a foto de sua filha na parede. Qual deve ser sua participação nessa decisão? Indo mais ao ponto, qual deve ser minha participação na decisão sobre o quadro com a foto da filha dele, se eu trabalho do outro lado da fábrica, em outra divisão, ou até mesmo do outro lado da cidade?
Suponha que uma outra trabalhadora queira escutar punk rock ou new age jazz durante todo o dia no local onde ela trabalha. Qual deve ser a participação dela nessa decisão? E qual deve ser a minha participação, se eu trabalho apenas um andar acima dela, e posso escutar claramente a música? E se eu trabalhasse do outro lado da cidade?
Suponha que uma equipe, em algum local de trabalho, esteja decidindo um horário comum. Qual deve ser a participação de cada membro nessa decisão, ou em relação aos outros trabalhadores da fábrica? E os companheiros que utilizam a produção desse grupo em outra parte da fábrica? E os companheiros que consomem os produtos da fábrica na cidade ou do outro lado do país?
Ou suponha que você viva perto da minha fábrica. Qual deve ser a sua participação, em relação à minha, no que diz respeito ao barulho que minha fábrica produz na sua vizinhança? Você consome produtos que eu ajudo a produzir. Qual deve ser a sua participação com relação ao que a fábrica produz, às nossas escolhas para organização e produção, e à minha situação de trabalho?
Estas são todas questões muito sérias e pertinentes. Não há uma resposta única, obviamente. Não é possível que, em cada um destes casos, a pessoa deva ter total participação ou nenhuma participação, participação equivalente, mais ou menos participação. Estes casos se diferem. Não é possível que a regra do “cada pessoa, um voto - vencendo a maioria” seja ótima sempre, ou fazer uma votação na qual quem conseguir três quintos vence, ou utilizar o consenso, e assim por diante. São métodos diferentes. Mas talvez haja ao menos um único modelo que abranja todos estes casos e todas as outras tomadas de decisão econômicas também.
Autogestão
Aplicar o mesmo termo “disciplina” para conceitos desconexos como os estúpidos impulsos reflexivos de um corpo com mil mãos e mil pernas, e a coordenação espontânea dos atos de consciência política para um grupo de pessoas, é abusar das palavras.
O que a docilidade bem ordenada do criador pode ter em comum com as aspirações de uma classe lutando por sua emancipação?
-Rosa Luxemburgo
Por que os trabalhadores devem concordar em ser escravos de uma estrutura fundamentalmente autoritária? Eles próprios devem ter o controle sobre ela. Por que as comunidades não devem ter participação plena na gestão das instituições que afetam suas vidas?
-Noam Chomsky
Um trabalhador, evidentemente, deve ter participação total nas decisões sobre a foto de sua filha que fica em sua mesa. Ele decide, eu não tenho participação, já que meu espaço de trabalho fica ao lado do dele. Mas eu devo ter poder de veto sobre a opção dos meus vizinhos de tocar punk rock em seu espaço o dia todo, mesmo estando nesse local de trabalho que fica ao lado. Semelhantemente, um grupo de trabalho deve ter mais participação nas suas escolhas operacionais, mas os grupos que consomem seus produtos devem ter alguma participação também, na mesma proporção que são afetados. Uma vez que se tente expressar estes simples pontos, a lição óbvia é que:
1) As decisões freqüentemente se diferem por razão do quanto elas afetam diferentes indivíduos ou grupo de indivíduos. E
2) Como resultado, a regra do “cada pessoa, um voto - vencendo a maioria”, ou a regra de quem tiver dois-terços dos votos vence, ou o consenso, ou a ditadura, ou qualquer forma particular de tomada de decisão, são meramente alternativas táticas para a implantação de algum modelo mais geral num contexto específico, ao invés de um fim em si mesma. Então, disso também resulta que:
3) Endeusar um único método de tomada de decisão e considerá-lo aplicável em qualquer situação – o sistema de voto direto, ou consenso, ou um poder ditatorial para uma pessoa – significa não considerar que diferentes abordagens para distribuir as tomadas de decisão influenciam a adaptação em diferentes situações, mesmo se nós estivermos tentando executar o mesmo modelo.
Então, o que nós realmente precisamos não é colocar algum método de tomada de decisão sobre todos os outros, mas escolher nossos métodos de tomada de decisão baseados em quão apropriados eles são, para melhor executar um modelo escolhido no contexto específico que nós enfrentamos.
Mas qual modelo nós devemos almejar? Assumindo que nós respeitamos todos os envolvidos, quando decidimos espontaneamente como tomar decisões específicas na vida cotidiana, nós automaticamente tentamos dar a cada agente uma participação proporcional ao grau que ele é afetado. Nós não temos um amigo que decide qual é o filme que todos vão ver, e nós também não fazemos simplesmente uma votação. Todos amigos têm o poder de dar sua opinião, e se alguém já tiver visto o filme ou tiver alguma outra necessidade urgente, essa pessoa pode ter maior poder de decisão sobre isso. E enquanto nós não pudermos atingir de forma perfeita um nível de autogestão, no qual todos tenham participação nas tomadas de decisão de forma exatamente proporcional ao grau que são afetados pelas conseqüências, nós sabemos por intuição que qualquer desvio desses meios fará com que ao menos uma pessoa tenha um impacto excessivo nas decisões e que esteja sendo negada a justa porção de impacto a pelo menos uma outra pessoa.
Certamente, algumas vezes existem razões para violar a participação proporcional de todos. Suponha que haja um repentino anúncio que uma grande onda esteja vindo em nosso rumo. Um de nós é um especialista em sobrevivência nessa situação e o resto das pessoas da cidade nada sabe sobre a questão. Uma rápida mudança para uma “ditadura” é prudente nesse caso. Mas este critério não anula nossa tendência natural de defender a participação nas tomadas de decisão, de forma proporcional aos efeitos causados, como nosso modelo guia para uma boa economia? Isso sugere que temos que adotar, ao invés disso, como muitos defenderiam, a participação nas tomadas de decisão de acordo com o conhecimento relevante ao assunto e a qualidade das decisões que nós esperamos que uma pessoa atinja? Vamos ver.
Conhecimento e Decisões
Esta reorganização irá depender, acima de tudo, da completa familiaridade do trabalho com a situação econômica do país; de um completo estoque de abastecimento, de um conhecimento exato das fontes de matéria prima, e de uma organização própria das forças produtivas para uma gestão eficiente.
-Alexander Berkman
O conhecimento relevante para as decisões vem de duas formas.
1) Existe o conhecimento do caráter das decisões, do seu contexto e de suas implicações mais comuns. E
2) Há também o conhecimento de como cada pessoa percebe estas implicações e, especificamente, como elas dão valor às diversas alternativas.
O primeiro tipo de conhecimento é, freqüentemente, bastante especializado, como no caso do herói da grande onda que tem o completo domínio sobre esse conhecimento. Mas o segundo tipo de conhecimento é sempre disperso, uma vez que nós somos, cada um, individualmente, os maiores especialistas do mundo, considerando nossas próprias avaliações. Eu sei bem que eu não quero me afogar. Eu sou o maior especialista do mundo, segundo as minhas avaliações dos impactos das situações sobre mim. Você está considerando a si mesmo. Shawn, Sally, Sue, Sam e Samantha estão considerando a eles próprios. Agora, pode ser que Sally também seja a maior especialista do mundo em algumas situações de características e valores mais comuns... mas isso é diferente de como ela ou eu nos sentimos a respeito dos efeitos mais comuns destas situações sobre ela ou sobre mim.
Portanto, sempre que as decisões de conhecimento especializado, relativas a algumas questões, puderem ser difundidas o suficiente para que cada agente tenha condições de avaliar a situação e ter sua própria visão, de como ele é afetado em um longo tempo, para expressar isso na decisão, cada agente deve ter participação proporcional aos efeitos que ele irá sofrer. Sempre que isso for impossível por alguma razão, e os prejuízos por se cometer um erro forem grandes, nós provavelmente precisaremos funcionar por algum tempo de acordo com um modelo diferente, que transfira temporariamente a autoridade, ainda que dentro de meios que não subvertam permanentemente nosso objetivo prévio de autogestão. Obviamente, nesse caso, o objetivo está se afastando daquilo que é mais desejável, e a conclusão sobre a necessidade de se distribuir conhecimento para permitir a autogestão é evidente.
Em suma, o fato de você ser um químico e entender a química e a biologia de uma camada de tinta numa parede e os efeitos que ela pode ter, e de eu ser um pintor ou um fabricante de carros e não entender a química envolvida nesse processo, e tendo eu apenas as informações que você transmite, isso não significará que sua opinião vai ter um peso maior, na tomada de decisão, quando formos decidir se minhas paredes terão que ser pintadas, ou se toda a nossa comunidade quer ou não a pintura. Isto significa, de qualquer forma, que os meus companheiros membros da comunidade e eu, devemos ouvir o seu depoimento de especialista antes de tomar uma decisão. Você é uma fonte de informação importante, certamente, mas na tomada de decisão em si, você se torna como todos os outros. No que diz respeito ao fornecimento de informação, você é um especialista, mas na própria decisão, você terá uma participação proporcional aos efeitos sofridos por você, assim como nós, que teremos uma participação proporcional aos efeitos que recairão sobre nós.
Conselhos e Outras Implicações
A organização dos conselhos, portanto, tece uma diversificada rede de corpos cooperativos no seio da sociedade, regulando sua vida e progresso de acordo com sua livre iniciativa. E tudo aquilo que é discutido e decidido nos conselhos extrai o seu poder efetivo da compreensão, da determinação, da ação da humanidade laboriosa.
-Anton Pannekoek
Ouça, Revolução, nós somos companheiros, veja - Juntos, nós podemos tomar tudo: Fábricas, arsenais, casas, navios, ferrovias, florestas, campos, pomares, linhas de ônibus, telégrafos, rádios (Jesus! Atinja o inferno com as rádios!), fábricas de aço, minas de carvão, poços de petróleo, gás, todas as ferramentas de produção, (um grande dia pela manhã). Tudo - E entregá-los às pessoas que trabalham. Ordená-los e administrá-los para nós, as pessoas que trabalham.
-Langston Hughes
Assim, o objetivo da autogestão é que cada agente influencie as decisões proporcionalmente ao quanto ele é afetado, sendo entendido como um problema, o fato de se dar a alguns agentes, participação em demasia e a outros, pouca participação. Para chegarmos à autogestão e fazermos com que as decisões sejam satisfatórias, cada agente deve ter fácil acesso às avaliações relevantes dos resultados esperados, e deve ter conhecimento geral e segurança intelectual suficientes para entender as avaliações e desenvolver suas preferências sob sua luz. A organização da sociedade deve garantir que as fontes das análises, que tenham relação com a tomada de decisão, sejam imparciais, diversas e bem testadas. Portanto, para a autogestão, cada indivíduo ou grupo envolvido numa decisão deve possuir meios organizacionais para ter sucesso e tornar suas vontades conhecidas, assim como meios para controlá-las de maneira sensata, com suas contribuições bem-informadas, tendo a influência proporcional adequada.
Numa economia, para atingir a dita autogestão, nós precisamos de várias instituições (as quais nós chamamos de conselhos de trabalhadores e consumidores) para servirem como veículos de tomada de decisão para coletivos de trabalhadores e consumidores de diferentes tamanhos. Dessa forma, conselhos de grupos-de-trabalho, distribuição, locais de trabalho, indústrias e grupos de convivência, vizinhanças, comunidades e municípios, são necessários como veículos para que aqueles afetados pelas decisões expressem suas preferências individuais e grupais sobre estas decisões, decidindo suas prioridades, implementando resultados, etc. Nós também precisamos de uma difusão das informações que forneça o conhecimento necessário para que todos aqueles que sejam afetados pelas interações econômicas, possam julgá-las. Também é necessário que cada agente possua uma segurança pessoal, e que seja suficientemente capacitado para que se sinta confortável resolvendo, expressando, argumentando em benefício, e escolhendo suas preferências. E, finalmente, nós precisamos de meios de distribuição, de organização no local de trabalho e de outras interações institucionais que respeitem e promovam o modelo da autogestão e cumpram as exigências de difundir informação e de fortalecer os trabalhadores.
Existem muitas implicações institucionais no esforço para que a influência na tomada de decisão seja feita de forma proporcional às conseqüências sofridas, e discernindo até das implicações mais importantes deste modelo, quando aplicado. Mas o modelo, em si mesmo, é honesto. No próximo capítulo, nós mostramos um programa de exigências e ações que visam encorajar a autogestão econômica. Os próximos capítulos contêm assuntos adicionais que visam esse objetivo, como a organização nos locais de trabalho e como ocorre a distribuição.

A Tirania das Organizações Sem Estrutura

Artigo de Jo Freeman, 1970

Durante os anos em que o movimento feminista se formava, dava-se grande ênfase ao que se chamava de grupos sem estrutura, sem liderança, como a forma principal do movimento. Essa idéia tinha origem numa reação natural contra a sociedade superestruturada na qual a maioria de nós se encontrava, no controle inevitável que isso dava a outros sobre nossas vidas e no elitismo persistente da esquerda e de grupos similares entre aqueles que supostamente combatiam essa superestruturação.
A idéia da "ausência de estrutura", no entanto, passou de uma oposição saudável a essas tendências a um dogma. A idéia é tão pouco examinada quanto o termo é utilizado, mas tornou-se uma parte intrínseca e inquestionada da ideologia feminista. Para o desenvolvimento inicial do movimento, isso não importava muito. Ele definiu inicialmente seu método principal como a conscientização e o "grupo de discussão sem estrutura" era um meio excelente para esse fim. Sua flexibilidade e informalidade encorajavam a participação na discussão e o ambiente freqüentemente receptivo promovia a compreensão pessoal. Se nada de mais concreto que a compreensão pessoal resultasse desses grupos, isso não importava muito, porque seu propósito, na verdade, não ia além disso.
Os problemas básicos não apareceram até que grupos de discussão individuais exauriram as potencialidades da conscientização e decidiram que queriam fazer algo mais específico. Neste ponto, eles normalmente se atrapalhavam porque a maioria dos grupos não estava disposta a mudar sua estrutura na medida em que mudava sua tarefa. As mulheres tinham comprado totalmente a idéia de "ausência de estrutura" sem perceber as limitações de seus usos. As pessoas tentavam usar o grupo "sem estrutura" e a reunião informal para fins para os quais não eram apropriados, acreditando cegamente que quaisquer outros meios seriam simplesmente opressivos.
Se o movimento quiser avançar além desses estágios elementares de desenvolvimento, ele deverá livrar-se de alguns de seus preconceitos sobre organização e estrutura. Nenhum dos dois tem nada de intrinsecamente ruim. Eles podem e freqüentemente são mau usados, mas rejeitá-los de antemão porque são mau usados é nos negar as ferramentas necessárias ao nosso desenvolvimento ulterior. Precisamos entender porque a "ausência de estrutura" não funciona.

Estruturas formais e informais
Ao contrário do que gostaríamos de acreditar, não existe algo como um grupo "sem estrutura". Qualquer grupo de pessoas de qualquer natureza, reunindo-se por qualquer período de tempo, para qualquer propósito, inevitavelmente estruturar-se-á de algum modo. A estrutura pode ser flexível, pode variar com o tempo, pode distribuir entre os membros do grupo as tarefas, o poder e os recursos de forma igual ou desigual. Mas ela será formada a despeito das habilidades, personalidades e intenções das pessoas envolvidas. O simples fato de que somos indivíduos com aptidões, predisposições e experiências diferentes torna isso inevitável. Apenas se nos recusamos a nos relacionar ou interagir em qualquer base poderemos nos aproximar da "ausência de estrutura" e essa não é a natureza de um grupo humano.
Isso significa que lutar por um grupo "sem estrutura" é tão útil e tão ilusório quanto almejar uma reportagem "objetiva", uma ciência social "desprovida de valores" ou uma economia "livre". Um grupo de "laissez-faire" é quase tão realista quanto uma sociedade de "laissez-faire"; a idéia se torna uma dissimulação para que o forte ou o afortunado estabeleça uma hegemonia inquestionada sobre os outros. Essa hegemonia pode facilmente ser estabelecida porque a idéia da "ausência de estrutura" não impede a formação de estruturas informais, apenas de formais. Da mesma forma, a filosofia do "laissez-faire" não impedia os economicamente poderosos de estabelecer controle sobre os salários, preços e a distribuição dos bens; ela apenas impedia o governo de fazê-lo. Assim, a "ausência de estrutura" torna-se uma forma de mascarar o poder e no movimento feminista é normalmente defendida com mais vigor pelos mais poderosos (estejam eles conscientes de seu poder ou não). As regras sobre como as decisões são tomadas são conhecidas apenas por poucos e na medida em que a estrutura do grupo permanece informal, a consciência do poder é impedida por aqueles que conhecem as regras. Quem não conhece as regras e não é escolhido para iniciação deve permanecer confuso ou sofrer de desilusões paranóicas de que algo que não sabe bem o que é está acontecendo.
Para que todas as pessoas tenham a oportunidade de se envolver num dado grupo e participar de suas atividades, é preciso que a estrutura seja explícita e não implícita. As regras de deliberação devem ser abertas e disponíveis a todos e isso só pode acontecer se elas forem formalizadas. Isto não significa que a normalização de uma estrutura de grupo irá destruir a estrutura informal. Ela normalmente não destrói. Mas impede a estrutura informal de ter o controle predominante e torna disponível alguns meios de atacá-la. A "ausência de estrutura" é organizacionalmente impossível. Nós não podemos decidir se teremos um grupo estruturado ou sem estrutura, apenas se teremos ou não um grupo formalmente estruturado. Assim, a expressão "sem estrutura" não será mais usada, a não ser para referir-se à idéia que representa. O termo inestruturado referir-se-á àqueles grupos que não foram deliberadamente estruturados de uma forma particular. O termo estruturado referir-se-á àqueles que o foram. Um grupo estruturado tem sempre uma estrutura formal e pode também ter uma estrutura informal. Um grupo inestruturado tem sempre uma estrutura informal ou disfarçada. É esta estrutura informal, particularmente em grupos inestruturados, que fornece o fundamento para as elites.



A natureza do elitismo

"Elitista" é, provavelmente, a palavra mais abusada no movimento de liberação das mulheres. É usada com freqüência, mas nunca de forma correta. No movimento, ela normalmente se refere a indivíduos, ainda que suas atividades e características pessoais divirjam enormemente. Um indivíduo, enquanto indivíduo, nunca pode ser uma "elite" porque o termo "elite" só se aplica adequadamente a grupos. Nenhum indivíduo, independente de quão notório seja, pode ser uma elite.
De uma forma mais apropriada, uma elite refere-se a um pequeno grupo de pessoas que tem poder sobre um grupo maior do qual faz parte, normalmente sem responsabilidade direta sobre ele e, freqüentemente, sem seu conhecimento ou consentimento. Uma pessoa torna-se elitista por tomar parte ou defender o domínio deste pequeno grupo, seja esta pessoa bem conhecida ou totalmente desconhecida. Notoriedade não é uma definição de elitista. As elites mais traiçoeiras são normalmente comandadas por pessoas totalmente desconhecidas do grande público. Elitistas inteligentes são, em geral, espertos o suficiente para não se deixarem tornar muito conhecidos. Quando eles são conhecidos eles são vigiados e a máscara que esconde seu poder não fica mais firmemente presa.
O fato das elites serem informais não significa que sejam invisíveis. Num encontro de qualquer grupo pequeno, qualquer um com um olhar aguçado e um ouvido atento sabe dizer quem está influenciando quem. Os membros de um grupo de amigos confiarão mais nas pessoas do seu grupo do que nas outras. Eles ouvem mais atentamente e interrompem menos. Eles repetem os argumentos dos outros membros e cedem amigavelmente. Os "de fora", eles tendem a ignorar ou enfrentar. A aprovação dos "de fora" não é necessária para se chegar a uma decisão; no entanto, é necessário para os "de fora" manter uma boa relação com os "de dentro". É claro que as linhas não são tão bem definidas quanto as que eu tracei. Elas tem nuances de interação, não são roteiros pré-concebidos. Mas elas são discerníveis e têm o seu efeito. Quando se sabe quem é importante consultar antes da decisão ser tomada e a aprovação de quem é garantia de aceitação, então se sabe quem está mandando.
As elites não são conspirações. Dificilmente um pequeno grupo de pessoas se reúne e tenta tomar o grupo maior para seus próprios fins. As elites são, nada mais, nada menos, que um grupo de amigos que coincidem em participar das mesmas atividades políticas. Eles provavelmente manteriam sua amizade, participassem ou não dessas atividades políticas; e participariam das atividades, mantivessem ou não sua amizade. É a coincidência destes dois fenômenos que cria elites em qualquer grupo e as torna tão difíceis de serem destruídas.
Esses grupos de amigos funcionam como redes de comunicação à parte de quaisquer canais regulares para comunicação que possam ter sido estabelecidos pelo grupo. Se nenhum canal foi estabelecido, eles funcionam como as únicas redes de comunicação. Porque são amigas, normalmente partilhando os mesmos valores e posições, porque conversam socialmente entre si e se consultam quando as decisões comuns têm de ser tomadas, as pessoas que participam dessas redes têm mais poder no grupo que aquelas que não participam. E são raros os grupos que não estabelecem redes de comunicação informal por meio dos amigos que fazem neles.
Alguns grupos, dependendo de seu tamanho, podem ter mais do que uma dessas redes informais de comunicação. As redes podem até sobrepor-se. Quando apenas uma rede dessas existe, ela é a elite de um grupo que seria de outra forma inestruturado — queiram os seus participantes ser elitistas ou não. Se ela é a única dessas redes num grupo estruturado, ela pode ser ou não uma elite, dependendo da sua composição e da natureza da estrutura formal. Se existem duas ou mais dessas redes de amigos, elas podem competir pelo poder dentro do grupo, formando assim facções, ou uma delas pode deliberadamente abandonar a competição deixando a outra como elite. Num grupo estruturado, duas ou mais dessas redes de amizades normalmente competem entre si pelo poder formal. Essa é, em geral, a situação mais saudável. Os outros membros estão na posição de arbitrar entre os dois competidores pelo poder e são assim capazes de colocar exigências do grupo àqueles a quem deram uma confiança temporária.
Muitos critérios diferentes foram usados pelo país, uma vez que os grupos do movimento não decidiram concretamente quem deve exercer o poder dentro deles,. Com o passar do tempo, à medida que o movimento mudou, o casamento tornou-se um critério menos universal para a participação efetiva, embora todas as elites informais ainda estabeleçam padrões pelos quais apenas as mulheres que possuem certas características materiais ou pessoais podem participar. Os padrões freqüentemente incluem: origem de classe média (apesar de toda retórica sobre a relação com a classe operária), ser casada, não ser casada, mas viver com alguém, ser ou fingir ser lésbica, ter entre 20 e 30 anos, ter formação universitária ou, pelo menos, alguma passagem pela universidade, ser "descolada"; não ser muito "descolada", seguir uma certa linha política ou se identificar como "radical", possuir certos traços de personalidade "femininos", como ser "gentil", vestir-se adequadamente (seja no estilo tradicional, seja no anti-tradicional), etc. Existem também algumas características que quase sempre estigmatizariam a mulher como "desviante", uma pessoa com a qual não se deve relacionar. Elas incluem: ser velha demais, trabalhar período integral (principalmente se está ativamente dedicada à "carreira professional"), não ser "gentil" e ser declaradamente solteira (ou seja, nem heterossexual, nem homossexual).
Outros critérios poderiam ser incluídos, mas eles têm todos temas comuns. O pré-requisito característico para participar das elites informais do movimento e, portanto, para exercer o poder, diz respeito à origem, à personalidade e à disponibilidade de tempo. Eles não incluem a competência , a dedicação ao feminismo, a posse de talentos ou a contribuição potencial ao movimento. Os primeiros, são critérios que normalmente se usa para escolher os amigos. Os últimos, são critérios que qualquer movimento ou organização tem de usar se pretende ser politicamente eficaz.
Embora essa dissecação do processo de formação de elites em grupos pequenos tenha sido crítico em suas perspectivas, ele não foi feito com a crença de que essas estruturas informais são inevitavelmente ruins, apenas que são inevitáveis. Todos os grupos criam estruturas informais como resultado dos padrões de interação entre os membros. Essas estruturas informais podem fazer coisas úteis. Mas apenas grupos inestruturados são totalmente governados por elas. Quando elites informais estão juntas com o mito da "ausência de estrutura", não há meios de pôr limites ao uso de poder. Ele se torna caprichoso.
Isto tem duas conseqüências potencialmente negativas das quais deveríamos estar conscientes. A primeira é que a estrutura informal de deliberação será como uma "irmandade" , na qual se escuta as pessoas porque se gosta delas e não porque dizem algo significativo. Enquanto o movimento não faz coisas significativas, isso não importa muito. Mas para que seu desenvolvimento não pare numa etapa preliminar, ele deve alterar essa tendência. A segunda conseqüência é que as estruturas informais não têm obrigação de ser responsáveis pelo grupo como um todo. Seu poder não lhes foi dado; não pode ser tirado. Sua influência não se baseia no que fazem pelo grupo; portanto elas não podem ser diretamente influenciadas pelo grupo. Isso não torna necessariamente as estruturas informais irresponsáveis. Aqueles que se interessam em manter sua influência normalmente tentarão ser responsáveis. O grupo apenas não pode obrigar essa responsabilidade; ele depende dos interesses da elite.



As "estrelas"

A "idéia" da "ausência de estrutura" causou o aparecimento de "estrelas". Vivemos numa sociedade que espera que grupos políticos tomem decisões e escolham pessoas que articulem essas decisões para o público em geral. A imprensa e o público não sabem como escutar seriamente as mulheres enquanto indivíduos; eles querem saber como o grupo se sente. Apenas três técnicas foram desenvolvidas para estabelecer a opinião de grandes grupos: o voto ou o referendo, o questionário de pesquisa de opinião pública e a seleção, num encontro apropriado, de porta-vozes do grupo. O movimento de liberação das mulheres não tem usado nenhuma dessas técnicas para se comunicar com o público. Nem o movimento como um todo, nem a maioria dos grandes grupos dentro dele estabeleceram meios de explicar suas posições sobre os vários assuntos. Mas o público está condicionado a procurar porta-vozes.
Apesar de não ter conscientemente escolhido porta-vozes, o movimento lançou muitas mulheres que chamaram a atenção do público por diversas razões. Essas mulheres não representam um grupo particular ou uma opinião estabelecida; elas sabem disso e normalmente o dizem. Mas porque não há porta-vozes oficiais nem qualquer corpo deliberativo que a imprensa possa entrevistar, quando ela quer saber a posição do movimento sobre um dado assunto, essas mulheres são tomadas como porta-vozes. Assim, queiram ou não, goste o movimento ou não, por omissão, as mulheres com distinção pública são colocadas no papel de porta-vozes.
Essa é uma das origens do que normalmente se sente das mulheres consideradas "estrelas". Já que elas não foram escolhidas pelas mulheres do movimento para representar as posições do movimento, elas se ofendem quando a imprensa pressupõe que elas falam pelo movimento… Assim, o combate às "estrelas", na verdade, encoraja precisamente o tipo de irresponsabilidade individual que o movimento condena. Ao expulsar uma companheira sob a pecha de "estrela", o movimento perde qualquer controle que possa ter tido sobre a pessoa, que se torna livre para cometer todo tipo de pecado individualista de que foi acusada.
Impotência política

Grupos inestruturados podem ser muito eficazes para fazer as mulheres falarem sobre suas vidas, mas eles não são muito bons para fazer as coisas acontecerem. A não ser que o modo de operação mude, os grupos tropeçam quando chega o momento em que as pessoas se cansam de "apenas conversar" e querem fazer algo mais. Uma vez que o movimento como um todo, na maioria das cidades, é tão inestruturado quanto os grupos de discussão individuais, ele não é muito mais eficaz em tarefas específicas do que os grupos separados. A estrutura informal está raramente suficientemente junta ou suficientemente em contato com as pessoas para ser capaz de operar eficazmente. Assim, o movimento gera muita emoção e poucos resultados. Infelizmente, as consequências de toda essa emoção não são tão inócuas quanto os resultados e a vítima é o próprio movimento.
Alguns grupos que não envolvem muitas pessoas e trabalham em pequena escala, tornaram-se projetos de ação local. Mas essa forma restringe a atividade do movimento ao nível local. Além disso, para funcionarem bem, os grupos precisam normalmente se reduzir àqueles grupos informais de amigos que tocavam as coisas. Isto impede muitas mulheres de participarem. Enquanto a única forma de participação no movimento for a filiação a um pequeno grupo, aquelas mulheres que não aderem estão em evidente desvantagem. Enquanto os grupos de amizade forem o principal meio de atividade organizacional, o elitismo se torna institucionalizado.
Para aqueles grupos que não conseguem encontrar um projeto local ao qual se dedicar, o mero ato de estar junto torna-se a razão de estar junto. Quando um grupo não tem uma tarefa específica (e a conscientização é uma tarefa), as pessoas voltam suas energias para o controle de outras pessoas do grupo. Isto não é feito tanto por um desejo maligno de manipular os outros (embora às vezes o seja) quanto pela falta de alguma coisa melhor para fazer com seus talentos. Pessoas hábeis com tempo disponível e uma necessidade de justificar seus encontros se empenham no controle pessoal e gastam seu tempo criticando as personalidades dos outros membros do grupo. Disputas internas e jogos de poder pessoais tomam conta do dia. Quando um grupo está envolvido numa tarefa, as pessoas aprendem a conviver com os outros como são e a desprezar antipatias em benefício de objetivos maiores. Há limites colocados à compulsão de moldar cada pessoa à concepção que se tem do que deve ser.
O fim da conscientização deixa as pessoas sem direção e a falta de estrutura as deixa sem meios de chegar lá. As mulheres do movimento ou se voltam para si mesmas e suas companheiras ou buscam outras alternativas de ação. E há poucas alternativas disponíveis. Algumas mulheres simplesmente "fazem suas próprias coisas". Isso pode levar a um grande grau de criatividade individual que pode, em grande parte, ser útil ao movimento, mas não é uma alternativa viável para a maioria das mulheres e certamente não promove um espírito de esforço cooperativo de grupo. Outras mulheres abandonam inteiramente o movimento porque não querem desenvolver um projeto pessoal e não encontraram meios de descobrir, associar-se ou começar projetos de grupo que as interessem.
Muitas se voltam para outras organizações políticas para dar-lhes o tipo de atividade estruturada e eficaz que elas não conseguiram encontrar no movimento das mulheres. Dessa forma, essas organizações políticas que vêm a liberação das mulheres como apenas uma questão entre outras, consideram o movimento de liberação um vasto manancial para o recrutamento de novos membros. Essas organizações não precisam se "infiltrar" (embora isso não exclua que o façam). O desejo de uma atividade política significativa gerado pelas mulheres ao se tornarem parte do movimento de liberação é suficiente para torná-las ansiosas de entrarem em outras organizações. O próprio movimento não permite nenhum tipo de vazão para suas novas idéias e energias.
Aquelas mulheres que entram em outras organizações políticas e permanecem no movimento de liberação das mulheres ou que entram no movimento de liberação e permanecem em outras organizações políticas, tornam-se, por sua vez, pontos de apoio para novas estruturas informais. Essas redes de amizade se baseiam mais nas suas políticas comuns não-feministas que nas características discutidas anteriormente; no entanto, a rede opera praticamente da mesma forma. Já que essas mulheres partilham valores, idéias e orientações políticas comuns, elas também se tornam elites irresponsáveis, não escolhidas, não planejadas e informais — pretendam sê-las ou não.
Essas novas elites informais são freqüentemente sentidas como ameaças pelas velhas elites informais estruturadas anteriormente a partir de outros movimentos. Trata-se de um sentimento justificado. Essas redes politicamente orientadas dificilmente estão dispostas a ser meras "irmandades" como eram muitas das antigas e querem fazer proselitismo de suas idéias políticas e feministas. Isso é natural, mas as implicações disso para o movimento de liberação das mulheres nunca foram adequadamente discutidas. As velhas elites dificilmente estão dispostas a discutir abertamente essas diferenças de opinião porque isso implicaria em expor a natureza da estrutura informal do grupo. Muitas dessas elites informais tem se escondido sob a bandeira do "anti-elitismo" e da "ausência de estrutura". Para combater efetivamente a competição de outra estrutura informal, elas teriam que tornar-se "públicas" e essa possibilidade é temida por suas inúmeras implicações perigosas. Assim, para manter seu próprio poder, torna-se mais fácil racionalizar a exclusão dos membros da outra estrutura informal por meios como o "combate aos vermelhos", o "combate às lésbicas" ou o "combate às heteros". A única outra alternativa é estruturar o grupo formalmente de tal maneira que o poder original seja institucionalizado. Isso nem sempre é possível. Se as elites informais forem bem estruturadas e tiverem exercido uma boa quantidade de poder no passado, tal tarefa é viável. Esses grupos têm uma história de atividade política relativamentente eficaz na qual a firmeza da estrutura informal se mostrou um substituto adequado à estrutura formal. A sua estruturação não altera muito sua operação, embora a institucionalização da estrutura de poder abra espaço para a contestação formal. Normalmente, são os grupos que mais necessitam de estrutura, os menos capazes de criá-la. Suas estruturas informais não foram bem formadas e a adesão à ideologia da "ausência de estrutura" as faz relutantes em mudar de estratégia. Quanto mais inestruturado um grupo é, tanto mais carece de estruturas formais; quanto mais adere a uma ideologia de "ausência de estrutura", mais vulnerável está a ser tomado por um grupo de companheiras oriundas de organizações políticas.
Uma vez que o movimento como um todo é tão inestruturado quanto a maioria dos grupos que o constitui, ele é igualmente suscetível à influência indireta de outras organizações. Mas o fenômeno manifesta-se diferentemente. Num nível local, a maior parte dos grupos consegue operar autonomamente mas apenas os grupos que conseguem organizar uma atividade no nível nacional podem ser considerados grupos nacionalmente organizados. Assim, são as organizações feministas estruturadas que em geral fornecem as direções nacionais para as atividades feministas e essas direções são determinadas pelas prioridades dessas organizações. Grupos como a "Organização Nacional das Mulheres" e a "Liga de Ação pela Igualdade das Mulheres" e algumas convenções feministas de esquerda são as únicas organizações capazes de montar uma campanha nacional. Os inúmeros grupos inestruturados de liberação das mulheres podem escolher se vão apoiar ou não as campanhas nacionais, mas são incapazes de organizar uma campanha elas próprias. Dessa forma, seus membros se tornam as tropas sob a liderança das organizações estruturadas. Eles não têm sequer os meios de decidir quais devem ser as prioridades.
Quanto mais inestruturado um movimento é, menos controle ele tem sobre as direções na qual se desenvolve e sobre as ações políticas na qual se engaja. Isso não significa que suas idéias não vão se espalhar. Dado um certo grau de interesse dos meios de comunicação e condições sociais favoráveis, as idéias poderão ser difundidas amplamente. Mas o fato das idéias serem difundidas não implica que serão implementadas; significa apenas que serão discutidas. Na medida em que podem ser aplicadas individualmente, elas podem ser realizadas, mas na medida em que requerem poder político coordenado para ser implementadas, elas não o serão.
Enquanto o movimento de liberação das mulheres permanece dedicado a uma forma de organização que enfatiza os pequenos e inativos grupos de discussão entre amigas, os piores problemas da inestruturação não se farão sentir. Mas esse estilo de organização tem seus limites; é politicamente ineficiente, excludente e discriminatório quanto às mulheres que não estão ou não podem estar ligadas a redes de amigas. Aquelas que não se enquadram no esquema existente por motivo de classe, raça, profissão, casamento, maternidade ou personalidade serão inevitavelmente desencorajadas de tentar participar. Aquelas que se encaixam desenvolverão interesses dissimulados de manter as coisas como estão.
Os interesses dissimulados dos grupos informais serão mantidos pelas estruturas informais que existem e o movimento não terá meios de determinar quem deve exercer o poder nele. Se o movimento continua, deliberadamente, a não escolher quem deve exercer o poder, ele termina por não abolir o poder. Tudo que faz é abdicar o direito de exigir daquele que exerce o poder e a influência que tenha responsabilidade por esse poder e essa influência. Se o movimento continua a manter o poder tão difuso quanto possível porque sabe que não pode exigir responsabilidade daquele que o tem, ele impede qualquer grupo ou pessoa de dominá-lo totalmente. Mas, simultaneamente, ele se condena a ser tão ineficaz quanto possível. Um meio-termo entre a dominação e a ineficácia pode e deve ser encontrado.
Esses problemas estão surgindo agora porque a natureza do movimento está mudando necessariamente. A conscientização, como função principal do movimento de liberação das mulheres, está se tornando obsoleta. Devido à intensa publicidade da imprensa nos últimos dois anos e aos inúmeros livros e artigos que circulam agora nos meios estabelecidos, a liberação das mulheres se tornou uma expressão assimilada. Seus temas são debatidos e os grupos de discussão informais são formados por pessoas que não têm conexão explícita com nenhum movimento. O trabalho puramente educacional não é mais uma necessidade imperativa. O movimento deve continuar com outras tarefas. Ele precisa agora estabelecer suas prioridades, determinar suas finalidades e perseguir seus objetivos de maneira coordenada. Para fazê-lo ele deve organizar-se localmente, regionalmente e nacionalmente.

Princípios da estruturação democrática
A partir do momento em que o movimento não se prende mais tenazmente à ideologia da "ausência de estrutura" ele estará livre para desenvolver aquelas formas de organização que melhor se adequam ao seu funcionamento saudável. Isto não significa que devemos ir ao outro extremo e cegamente imitar as formas tradicionais de organização. Mas nós também não devemos cegamente rejeitá-las. Algumas técnicas tradicionais mostrar-se-ão úteis, ainda que imperfeitas; outras nos darão idéias sobre o que devemos fazer para obter certos fins com custos mínimos para as pessoas no movimento. Na maior parte dos casos, nós teremos que experimentar com formas diferentes de estruturação e desenvolver uma variedade de técnicas para usar em situações variadas. O "sistema de sorteio" é uma dessas idéias que emergiram do movimento. Ele não é aplicável a todas situações mas é útil em algumas. Outras idéias para a estruturação são necessárias. Mas antes que procedamos na experimentação inteligente, devemos aceitar a idéia de que não há nada de inerentemente ruim na estrutura em si mesma — apenas no seu uso excessivo.
Enquanto entramos nesse processo de tentativa e erro, existem alguns princípios que podemos ter em mente que são essenciais para a estruturação democrática e que são também politicamente eficazes:
1. Delegação, por meios democráticos, de autoridade específica a indivíduos específicos para tarefas específicas. Deixar pessoas assumirem trabalhos ou tarefas por omissão ou negligência significa apenas que eles não serão feitos de forma segura. Se as pessoas são escolhidas para uma tarefa, preferencialmente após manifestarem um interesse ou vontade de fazê-la, elas assumem um compromisso que não pode ser facilmente ignorado.
2. Exigência de que aqueles a quem a autoridade foi delegada sejam responsáveis frente aqueles que os escolheram. Essa é a forma pela qual o grupo tem controle sobre as pessoas em posições de autoridade. Indivíduos podem exercer o poder, mas é o grupo quem tem a última palavra sobre a forma como o poder é exercido.
3. Distribuição da autoridade entre tantas pessoas quanto possa ser razoavelmente possível. Isso impede o monopólio do poder e exige daqueles em posições de autoridade que consultem muitas outras pessoas no exercício de seu poder. Também oferece a muitas pessoas a oportunidade de ter responsabilidade por tarefas específicas e dessa forma aprender habilidades específicas.
4. Rotação de tarefas entre as pessoas. Responsabilidades que são mantidas durante muito tempo por uma mesma pessoa, formalmente ou informalmente, passam a ser vistas como sua "propriedade" e não são facilmente substituídas ou controladas pelo grupo. Inversamente, se a rotatividade das tarefas é muito freqüente, as pessoas não têm tempo para aprender seu trabalho direito e adquirir o sentimento do trabalho bem feito.
5. Alocação de tarefas segundo critérios racionais. Escolher pessoas para uma posição porque elas são queridas pelo grupo ou lhes dar um trabalho pesado porque não são queridas, prejudica, a longo prazo, o grupo e a pessoa. Habilidade, interesse e responsabilidade têm de ser as principais preocupações nessa seleção. As pessoas devem ter a oportunidade de aprender habilidades que não possuem, mas isso é melhor implementado por uma espécie de programa de "aprendizes" do que pelo método do "ou nada ou afoga". Ter uma responsabilidade maior do que se agüenta pode ser desmoralizante. Inversamente, ser rejeitado naquilo que se faz bem não encoraja ninguém a desenvolver habilidades. As mulheres têm sido punidas por serem competentes por toda história humana. O movimento não precisa repetir esse processo.
6. Difusão de informação a todos com a maior freqüência possível. Informação é poder. O acesso à informação aumenta o poder. Quando uma rede informal dissemina novas idéias e informações entre si, sem passar pelo grupo, ela está envolvida num processo de formação de opinião sem a participação do grupo. Quanto mais se sabe como as coisas funcionam, mais politicamente eficaz se é.
7. Acesso igualitário aos recursos necessários ao grupo. Isto nem sempre é possível, mas deve se lutar para consegui-lo. Um membro que mantenha um monopólio sobre um recurso necessário (por exemplo, uma gráfica ou um laboratório de revelação do marido) pode influenciar indevidamente o uso daquele recurso. Habilidades e informação também são recursos. E as habilidades e informações dos membros só estarão igualmente distribuídos quando os membros quiserem ensinar o que sabem para os outros.

Quando esses princípios são aplicados, eles asseguram que quaisquer estruturas que sejam desenvolvidas serão controladas pelo grupo e assumirão responsabilidades frente a ele. O grupo de pessoas em posição de autoridade será difuso, flexível, aberto e temporário. Eles não estarão numa posição que facilita a institucionalização do seu poder, porque as decisões definitivas serão feitas pelo grupo como um todo. O grupo terá assim o poder de determinar quem deve exercer a autoridade dentro dele.

*Recusando-se a ser uma vítima*



Obrigação e responsabilidade
bell hooks

Quando o Feminist Theory: From Mergin to Center foi publicado em 1984, eu encorajava as mulheres engajadas no movimento feminista a evitar o manto da vitimização na nossa busca para chamar a atenção pública a respeito da necessidade de acabar com o sexismo, exploração e opressão sexistas. Criticando uma cisão de irmandade fundamentada em vitimização compartilhada, eu encorajava as mulheres a se unirem pelas bases da solidariedade política. Parecia irônico para mim que as mulheres brancas que mais falavam sobre serem vitimas, como escrevi na época, “eram as mais privilegiadas e tinham mais poder que a vasta maioria das mulheres em nossa sociedade”. E se o compartilhamento da vitimização era a razão para ser feminista, então as mulheres que eram empoderadas, que não eram vitimas, não iriam abraçar o feminismo. Meu repúdio à identidade vitimada surgiu de meu conhecimento da maneira em que pensar numa pessoa como vítima podia ser desempoderador e imobilizador.

Vinda de comunidades feministas no sul segregacionista, eu nunca tinha escutado das mulheres negras sua vitimização. Enfrentando a dureza, a destruição causada por falta e privação econômica, a injustiça cruel do apartheid racial, eu vivia em um mundo em que as mulheres ganhavam força no compartilhamento de saber e recursos, e não porque se juntavam na base de serem vítimas. A despeito da incrível dor de viver no apartheid racial, as pessoas negras sulistas não falavam sobre nós mesmas como vítimas mesmo quando nós éramos humilhadas. Nós nos identificávamos mais pela experiência da resistência e triunfo do que pela natureza de nossa vitimização. Era um fato que a vida era dura, que havia sofrimento. Era pelo enfrentamento desse sofrimento com graça e dignidade que uma pessoa experienciava transformação. Durante a luta pelos direitos civis, quando nos demos as mão para cantar “nós vamos superar”, nós estávamos empoderadas e empoderados por uma visão de preenchimento, de vitória. Muito do conhecimento que eu trouxe para a luta feminista sobre o risco da identificação com a vitimização veio das práticas de vida em confronto das pessoas negras no sul segregacionista. Quando eu alertei as mulheres envolvidas no movimento feminista a tomarem cuidado com a identidade vitimada, eu estava certa de que as pessoas negras ativistas na luta por libertação já sabiam disso. E, ainda assim, no final dos anos 80 as pessoas negras estavam cada vez mais falando de vitimização, reclamando uma identidade vitimada. De repente, críticas e críticos negr@s levantavam publicamente suas vozes alertando às pessoas negras sobre os perigos de se abraçar a vitimização. Um desses pensadores era Shelby Steele. Seus ensaios The content of our character foram publicados com uma nota de orelha que afirmava estar apresentando “uma nova visão de raça nos Estados Unidos”. Essa visão era simples. Ele chamava para o repúdio da retórica da vitimização.

Muitas e muitos estadunidenses concordavam com a asserção de Steele que reinvindicar a vitimização de maneira absoluta é perigosamente desempoderadora. Contudo, sua demanda de que repudiássemos a identidade vitimada foi minada por sua insistência de que a agressão racista não era mais uma ameaça ao bem estar das pessoas negras. Esta linha de argumentação parecia ser oportunamente dirigida a um público branco; era uma afirmação completamente sem fundamento. Praticamente todas e todos os/as afro-american@s enfrentam algum grau de assédio racial nessa sociedade - por mais relativo que seja - cotidianamente. A tentativa de Steele de negar esta realidade estava conectada a sua recusa por chamar a atenção às maneiras com que brancos e brancas estadunidenses são responsáveis por perpetuarem e manterem a supremacia branca. Ao deixar de chamar a atenção para a responsabilidade branca, ele impôs às pessoas negras que esta responsabilidade da ação contra o racismo fosse unicamente delas, a responsabilidade de repudiar a identidade vitimada. Isso pareceu irônico dado que na realidade era precisamente o repúdio branco à militância negra de resistência ao racismo que dispôs o fundamento de uma ênfase na vitimização.

A palavra “vítima” não aparece na grande maioria dos escritos de resistência da era dos direitos civis. Mas já em 1985, Martin Luther King percebe que a demanda pela “realização da igualdade” não estava sendo ouvida pelas pessoas brancas. Em Where do we go from here King sinalizava um sentimento crescente de desempoderamento que era indicado pela reação branca às vitórias do movimento de direitos civis:

As pessoas negras da América atingiram ao presidente, à imprensa e seu púlpito com suas palavras quando falaram em termos amplos sobre liberdade e justiça. Mas a ausência da brutalidade e do mal irregenerável não significa que a justiça se faz presente. Permanecer assassinado não é a mesma coisa que declarar cumplicidade. A palavra está quebrada, e as expectativas do(a) negro(a), que correm livres, vão de encontro à resistência branca. O resultado é o genocídio. Os(as) negros(as) se sentiram enganados, especialmente no norte, enquanto muitos brancos sentiram que os(as) negros(as) ganharam muito e por serem (os negros\as) gananciosos(as) e lascivos(as) iriam pedir mais em breve.

A resistência militante à supremacia branca ficou com medo das pessoas estadunidenses brancas, mesmo daquelas liberais e radicais que estavam comprometidas na luta pelo fim da discriminação racial. Havia uma grande diferença entre uma luta pelos direitos civis que trabalhava primordialmente para acabar com a discriminação e um compromisso radical com a autodeterminação negra. Ironicamente, muitas pessoas brancas que tinham lutado lado a lado com as negras responderam positivamente às imagens da vitimização negra. Muitas pessoas brancas testemunharam que elas tinham visto o sofrimento da gente negra no sul segregacionista e ficaram comovidas a trabalhar por mudanças. A imagem das negras como vítimas era bem aceita na consciência de toda pessoa branca; era a imagem das pessoas negras como iguais, como autodeterminadas que não tinha lugar – que não poderia evocar nenhuma resposta simpática. Em cumplicidade com os estados-nação, todos os brancos estadunidenses responderam à militância negra pela aceitação passiva das organizações negras e ao massacre de suas lideranças.

No despertar dos chamados militantes pela autodeterminação negra, mulheres brancas de classes privilegiadas, muitas das quais eram ativistas pelos direitos civis, começaram a organizar o movimento de libertação feminina. Inspiradas pela retórica da luta pela libertação negra, este grupo de mulheres (no qual nem todas eram brancas e privilegiadas) achou que seria útil abraçar a identidade vitimada. Sem testemunhar o assassinato de nenhuma líder do movimento feminista, sem nenhuma violência policial, sem o movimento de massa por justiça social, as mulheres brancas podiam coletivamente reparar os erros cometidos por um sistema de discriminação de gênero. A retórica da vitimização funcionou para as mulheres brancas no despertar do movimento feminista, quando as mulheres brancas estavam repentinamente recebendo ganhos por sua força de trabalho. Eram as primeiras a receber as recompensas da ação afirmativa. Nos anos 80 as mulheres brancas tinham alcançado mais ganhos no curto espaço de dez anos que mulheres negras e homens negros tinham conseguido depois de décadas de luta. Aqueles homens negros que estavam convencidos de que o patriarcado deveria permitir a eles maiores direitos que o das mulheres brancas eram os mais revoltados com a maneira com que a luta das mulheres era efetivamente mais bem sucedida quando o foco era obter maior acesso às esferas de poder hegemônicas, tradicionalmente domínio de homens brancos. Essa raiva não impediu que os homens negros desenvolvessem uma retórica similar na competição por favores e reparações da estrutura de poder do homem branco. As ativistas brancas do movimento feminista contemporâneo freqüentemente se comportavam da mesma maneira que suas companheiras do século XIX, aquelas que quando lutavam pelo voto estavam bem dispostas a evocar a supremacia branca como aquela estrutura de laços que devia levar os homens brancos a lhes dar privilégios e direitos antes de dá-los aos homens negros.

Quando as poucas feministas brancas do começo dos anos 70 escreveram sobre a hierarquia racial, comumente elas o fizeram para chamar a atenção a sua proximidade com o poder masculino branco, para mostrar como elas estavam erradas. Em 1970, Shulamith Firestone publicou The dialectic of sex: The case for Feminist revolution, no qual afirmou “o racismo é o sexismo estendido” – que “o racismo é um fenômeno sexual”. Inspirada nos paradigmas freudianos, Firestone, como outras mulheres daquela época, enxergou as relações raciais nos termos das relações hierárquicas dentro da família nuclear branca. Firestone, sem pudores, escreveu:

O homem branco é o pai, a mulher, esposa e mãe, o status dela depende dele; as pessoas negras, como as crianças, são suas propriedades, sua diferença física marca sua posição na classe subserviente, da mesma maneira que as crianças formam uma classe servil que se diferencia da adulta. Essa hierarquia de poder criou a psicologia do racismo da mesma forma que na família nuclear se criou a psicologia do sexismo.

A falha na análise de Firestone foi sua recusa a ver a forma com que o pensamento patriarcal medeia o racismo para romper o modelo que ela desenha. Quando ela escreveu, as pessoas negras não eram mais propriedade do homem branco, mas sim dependentes, então teria sido mais acurado ver as mulheres brancas e os homens negros como irmãs/irmãos engajados numa rivalidade pela atenção do pai, considerar a ausência da “mãe” nas formações patriarcais da hierarquia de poder. Certamente, a resposta de homens negros e mulheres brancas aos estágios iniciais do feminismo contemporâneo deixaram nítido que eles e elas se viam como rivais, competindo pela inclusão na estrutura de poder masculino branco. As mulheres negras estavam de fato fora desta corrida.

Logo quando ativistas negras no movimento feminista, como eu, estavam demandando que houvesse uma nova mirada na teoria e na prática feministas, repudiando a centralidade da vitimização, os negros estavam se apropriando da retórica da vitimização para trazer o foco para si mesmos. Uma leitura cuidadosa da literatura negra sobre direitos civis e sobre a luta por poder negros deixa nítido que a ênfase no segundo movimentos é solidamente o ganho de direitos e privilégios para homens – da mesma forma que a literatura feminista no começo do movimento era focada exclusivamente na necessidade de mulheres brancas. Em alguma medida o movimento de mulheres dominado pelas brancas mudou o olhar público, desviando-o dos homens negros e trazendo para as mulheres brancas. Fazendo uma manobra pela atenção dos brancos, líderes negros enfatizaram a vitimização, particularmente a dor que sofriam como resultado da agressão racista branca. Como suas contemporâneas brancas eles se utilizaram da retórica da vitimização porque era menos ameaçadora para os brancos. Nomear brancos como carrascos onipotentes era pagar tributo ao seu poder, vê-los como possuidores da cura de todos os males.

Enquanto a retórica da vitimização se tornava cada vez mais comum, parecia que ela era uma descrição acurada do estado da américa negra depois que as poderosas forças da supremacia branca tinham suprimido a resistência da militância. Desespero e sentimentos de desesperança são centrais à formação de uma psicologia da vitimização. O assassinato de líderes políticos negros naturalmente criou um clima de perda e caos que foi oportuno ao aumento do sentimento de desempoderamento. De repente, o espírito de resistência que tinha crescido junto a uma crença confrontadora de que o poder branco era limitado, que poderia ser mudado, desafiado e transformado, foi dissipado. Em seu lugar estava uma retórica que representava que aquela estrutura era onipotente, imutável.

A igreja negra sempre foi um lugar nos estados unidos em que as pessoas afro-americanas aprenderam maneiras reivindicatórias de pensar que aumentaram nossa capacidade de sobreviver e florescer. A teologia negra libertadora sempre interviu em qualquer tendência a elevar humanos ao status de seres onipotentes. Essa insistência nas limitações do humano foi crucial às pessoas negras que sofriam nas mãos de opressores e/ou exploradores brancos. A assunção de que seu poder era limitado, sujeito a forças além do controle, uma crença até mesmo no miraculoso, era uma visão de mundo empoderadora indo de encontro aos ensinamentos das forças brancas de colonização. Enquanto a religião perde espaço na vida de pessoas afro-americanas contemporâneas, especialmente as jovens, essas formas de pensamento reivindicatório não são ensinadas. Sem um sistema de crenças alternativo, as pessoas negras abraçam o sistema de valores existente, que diariamente reforça o desamparo aprendido. A grande mídia cotidianamente nos bombardeia com imagens de afro-american@s que espalham a mensagem da desesperança, engodo, que somos incapazes de mudar nossa situação de maneira significativa. Não é se causar espanto, então, que uma geração de pessoas negras que ganharam muito de seu conhecimento sobre raça e luta contra o racismo em filmes e na televisão se vejam como vítimas ou que elas e eles vejam que a única maneira de pararem de ser vítimas é assumindo o papel do carrasco. Na medida em que Shelby Steele força as pessoas negras a aceitarem a equação de negritude como vitimização – “ser negr@ é ser uma vítima; logo, não ser uma vítima é não ser negr@” - ele não examina o investimento branco nesta equação. As pessoas negras que abraçam a identidade vitimada fazem isso, pois acham que isto medeia suas relações com os brancos, que é mais fácil fazer apelos por compaixão que por reparação. Enquanto estadunidenses brancas e brancos tiverem mais disposição a se preocupar e cuidar de pessoas negras com uma “identidade negra vitimada”, uma mudança de paradigmas não terá lugar. Para não se identificarem como vítimas, as pessoas negras devem criar maneiras de iluminar questões de responsabilidade que acuradamente direcionem ambas a natureza de nossa vitimização dentro do patriarcado de supremacia branca e a natureza de nossa cumplicidade. Quando uma pessoa negra projeta uma identidade vitimada por que isso visibiliza mais suas preocupações, ela está sendo cúmplice de uma estrutura de dominação racista ofensiva na qual investe na ausência de trato. Enquanto estadunidenses brancas e brancos tiverem dificuldade de colaborar com a asserção da agência e autodeterminação individual ou coletiva de grupos ou pessoas negras, a vitimização vai continuar a ser o local da visibilidade.

Todos os grupos marginalizados nesta sociedade que sofrem graves injustiças, que são vitimizados por sistemas institucionalizados de dominação (raça, classe, gênero etc), estão face ao dilema peculiar de desenvolver estratégias que chamem a atenção para sua luta de uma forma que mereça respeito e consideração sem reinscrever um paradigma de vitimização. Quando afro-estadunidenses localizamos nossas preocupações sobre racismo e supremacia branca num discurso centrado na vitimização, podemos ganhar a atenção branca ao apagar o foco na auto-determinação. Não é coincidência que a voz que fala mais alto contra a evocação de uma moldura de vitimização é quase sempre aquela que focaliza a necessidade do separatismo racial, para que as pessoas negras assumam total responsabilidade por melhorar nossa condição. Ambos os discurso são totalizantes. Uma nova perspectiva de luta pela autodeterminação negra é necessária para que se mude o foco de uma moldura da vitimização para uma da responsabilidade. Porque é esse o discurso que permite às/aos afro-estadunidenses reconhecerem nossas cumplicidades, nossa necessidade pela existência de um processo de descolonização e politização radical, ao mesmo tempo em que permanecemos com firmeza nítida sobre o protagonismo que a grande maioria de pessoas brancas tem na perpetuação e manutenção da supremacia branca. De fato, as próprias pessoas brancas que vislumbram que as pessoas negras estão erradas por se fazerem vitimizadas publicamente são aquelas que mais negam seu papel diante a socialização racista que as privilegia em detrimento das pessoas negras. Elas que querem que todas as afro-estadunidenses repudiem uma identidade vitimada precisam estar prontas para entrar no encontro entre sujeitos com pessoas negras que são auto-determinadas. Abraçar esta mudança ia ser a abertura para a própria visão de plena igualdade racial que King considerou inimaginável a tantos estadunidenses brancos. Elas e eles que estão sedentos por viver numa sociedade que promova e recompense a igualdade racial têm que estar prontos a abrir mão de percepções ultrapassadas acerca das necessidades negras, percepções essas que as socializam a se sentir confortáveis conosco somente quando estão num lugar superior e de cuidado. Até que as massas estadunidenses brancas confrontem sua necessidade obsessiva por uma vítima negra totalmente passiva e clamem por uma responsabilidade que iria realmente demandar uma mudança na estrutura dessa sociedade, a retórica da vitimização vai continuar a florescer.

Estadunidenses negras e negros que exploram a retórica da vitimização fazem isso não só porque garante autoridade moral, mas por que isso fornece uma plataforma na qual as demandas podem ser feitas não mutuamente. Se somente as pessoas brancas precisam mudar, então as negras não precisam se envolver em processo de politização radical. Ironicamente, muitas e muitos afro-estadunidenses se sentem mais vitimizados/as (mesmo com nossos e nossas ancestrais certamente terem sofrido mais duramente repressão e injustiça) porque tem havido um crescente nível de expectativa. Aquelas pessoas negras criadas no sul segregacionista que foram ensinadas a esperar nada além de exploração das mãos de brancos não se desapontaram ou ficaram psicologicamente abaladas com formas de exclusão social e discriminação que eram consideradas menores. Hoje em dia, muitas pessoas negras são ensinadas, pela retórica da democracia liberal que vem até nós pela mídia corporativa, que podem esperar tratamento igual. Quando isso não acontece, um dissenso de vitimização é ligado a níveis mais altos de expectativas. Recentemente, eu estava dando uma palestra na universidade de Harvard sobre o ódio negro da supremacia branca. Fiquei entristecida pelo número de graduandas negras no público que falaram por muito tempo sobre os terríveis problemas que enfrentavam. Bastante prudentes das muitas maneiras que a vitimização racial se articula, elas se expressavam a partir de uma identidade vitimada. Mas sua noção de vitimização parecia estar totalmente fora de proporção numa realidade mais ampla. Elas se viam como vítimas por que tinham imaginado que iam ser tratadas como iguais, e quando isso não aconteceu faltou a elas um empenho íntimo para confrontar isso e efetivamente superar.

Diferentemente da assertiva de Shelby Steel de que as pessoas negras “se vitimizaram mais do que sofreram”, os específicos acontecimentos que elas apresentavam de fato configuravam vitimização. Entretanto, sua incapacidade de responder à agressão racista com resistência militante pareceu intensificar o sentimento de vitimização. Uma estudante relatou ter assistido uma aula de teoria feminista em que meu trabalho foi lido. Ela achou neste trabalho um espaço de reconhecimento e apoio. Mas no dia em que ele foi discutido na turma, a professora branca declarou que ninguém foi realmente tocada por meu trabalho, que eu era muito negativa. Indisposta a declarar sua agência, seu engajamento com o texto, essa jovem negra se sentiu ao mesmo tempo silenciada e vitimizada. Ela sentiu vontade de largar a faculdade. Se ela tivesse resistido naquela turma, não teria se sentido vitimizada. Ao contrário, ela sentiu a sua negritude desvalorizada e abriu mão de sua afirmação e, com isso, de sua integridade pessoal. Se uma resposta militante não poderia ter garantido uma recompensa a ela, teria ao menos preservado sua noção de si. Ensinado em instituições brancas privilegiadas, eu constantemente encontro estudantes negras e negros que se sentem vitimizadas/os, que não contextualizam a agressão racista a ponto de distinguir a dor de não ser convidado para uma festa ou deixada de fora de uma discussão sobre privação econômica grave, falta de acesso à formação básica e recursos etc.

Para reagir à fixação da retórica da vitimização, as pessoas negras tem que se engajar num discurso de auto-determinação. Este discurso precisa não estar fundamentado num movimento separatista, mas fazer parte de uma luta inclusiva para acabar com a dominação racista. A luta progressista para acabar com a supremacia branca reconhece a importância política da responsabilidade e não abraça a retórica da vitimização mesmo que ela vigilantemente chame atenção para a vitimização de fato.

GepaFeministas


O Grupo de Estudos e Práticas Feministas foi criado pela carência de entendimento tanto da sociedade quanto nossa, nas questões de violência contra mulher, violência de gênero.
A idéia inicial era juntar pessoas conhecidas e interessadas nas discussões que permeiam nosso cotidiano sobre como lutar por nossos direitos neste Estado, ainda, Patriarcal.
Para muitos/as essas conversa já foi esgotada no meio acadêmico, mas pelo pouco que experienciamos com olhos mais atentos nestes últimos tempos, ele está longe de ser lembrado apenas como um fato que ocorreu: o patriarcado existe e é motivo de violência social não só para mulheres, que sofrem ou afirmam seu discurso, como também para homens.

Este blog tem por objetivo divulgar as ações e teorias que desenvolvemos no grupo ao longo de sua existência na luta contra uma obrigatoriedade genital e a violência física, sexual e social que muitos/as sofrem hoje.