24 de agosto de 2009

Autogestão

Michael Albert
Tradução: Raphael Amaral e Felipe Corrêa

...toda autoridade é completamente degradante. Ela degrada aqueles que a exercem e degrada aqueles que sofrem seus efeitos... Quando ela é usada com certa bondade, e acompanhada de prêmios e recompensas, ela é terrivelmente desmoralizante. As pessoas, nesse caso, são menos conscientes da horrível pressão que está sendo colocada sobre elas, então seguem ao longo de suas vidas em uma espécie de conforto rude, como animais domesticados, sem nunca perceber que estão provavelmente imaginando a opinião das outras pessoas, vivendo pelos padrões de outras pessoas, praticamente vestindo o que poderia se chamar de roupas de outras pessoas, e nunca sendo elas mesmas por um único momento.
-Oscar Wilde
Qualquer economia certamente envolve muitas decisões, desde as de longo alcance até as relativamente limitadas. Quem decide? Quanto cada agente deve participar nas decisões econômicas? Nós acreditamos que a resposta é que cada agente deve participar do processo de tomada de decisões, na mesma proporção que ele é afetado pelas conseqüências, ou o que nós chamamos de “autogestão”. Nós preferimos essa, ao invés das mais típicas respostas: que nós devemos ser a favor da “liberdade econômica” ou do direito de se fazer qualquer coisa que se queira com pessoas ou propriedades, ou para todos terem a mesma participação em todas as decisões econômicas o tempo todo, ou para se dar mais participação aos mais conhecidos ou bem sucedidos do que para aqueles que são menos conhecidos ou mal sucedidos. Qual é a coerência de preferirmos a autogestão como nosso objetivo na tomada de decisões?
Decisões
Um homem pode pescar com uma minhoca que se alimentou de um rei, e pode também comer o peixe que se alimentou dessa minhoca.
-Shakespeare
Minha noção de democracia é que, sob ela, o mais fraco deve ter as mesmas oportunidades que o mais forte... Nenhum país no mundo demonstra atualmente qualquer preocupação pela proteção dos oprimidos...
A verdadeira democracia não pode ser conduzida por vinte homens sentados ao centro. Ela deve ser conduzida desde baixo, pelas pessoas de todas as vilas.
-Gandhi
Imagine que um trabalhador, numa fábrica, tenha sua própria área de trabalho. Suponha também que ele queira colocar um quadro com a foto de sua filha na parede. Qual deve ser sua participação nessa decisão? Indo mais ao ponto, qual deve ser minha participação na decisão sobre o quadro com a foto da filha dele, se eu trabalho do outro lado da fábrica, em outra divisão, ou até mesmo do outro lado da cidade?
Suponha que uma outra trabalhadora queira escutar punk rock ou new age jazz durante todo o dia no local onde ela trabalha. Qual deve ser a participação dela nessa decisão? E qual deve ser a minha participação, se eu trabalho apenas um andar acima dela, e posso escutar claramente a música? E se eu trabalhasse do outro lado da cidade?
Suponha que uma equipe, em algum local de trabalho, esteja decidindo um horário comum. Qual deve ser a participação de cada membro nessa decisão, ou em relação aos outros trabalhadores da fábrica? E os companheiros que utilizam a produção desse grupo em outra parte da fábrica? E os companheiros que consomem os produtos da fábrica na cidade ou do outro lado do país?
Ou suponha que você viva perto da minha fábrica. Qual deve ser a sua participação, em relação à minha, no que diz respeito ao barulho que minha fábrica produz na sua vizinhança? Você consome produtos que eu ajudo a produzir. Qual deve ser a sua participação com relação ao que a fábrica produz, às nossas escolhas para organização e produção, e à minha situação de trabalho?
Estas são todas questões muito sérias e pertinentes. Não há uma resposta única, obviamente. Não é possível que, em cada um destes casos, a pessoa deva ter total participação ou nenhuma participação, participação equivalente, mais ou menos participação. Estes casos se diferem. Não é possível que a regra do “cada pessoa, um voto - vencendo a maioria” seja ótima sempre, ou fazer uma votação na qual quem conseguir três quintos vence, ou utilizar o consenso, e assim por diante. São métodos diferentes. Mas talvez haja ao menos um único modelo que abranja todos estes casos e todas as outras tomadas de decisão econômicas também.
Autogestão
Aplicar o mesmo termo “disciplina” para conceitos desconexos como os estúpidos impulsos reflexivos de um corpo com mil mãos e mil pernas, e a coordenação espontânea dos atos de consciência política para um grupo de pessoas, é abusar das palavras.
O que a docilidade bem ordenada do criador pode ter em comum com as aspirações de uma classe lutando por sua emancipação?
-Rosa Luxemburgo
Por que os trabalhadores devem concordar em ser escravos de uma estrutura fundamentalmente autoritária? Eles próprios devem ter o controle sobre ela. Por que as comunidades não devem ter participação plena na gestão das instituições que afetam suas vidas?
-Noam Chomsky
Um trabalhador, evidentemente, deve ter participação total nas decisões sobre a foto de sua filha que fica em sua mesa. Ele decide, eu não tenho participação, já que meu espaço de trabalho fica ao lado do dele. Mas eu devo ter poder de veto sobre a opção dos meus vizinhos de tocar punk rock em seu espaço o dia todo, mesmo estando nesse local de trabalho que fica ao lado. Semelhantemente, um grupo de trabalho deve ter mais participação nas suas escolhas operacionais, mas os grupos que consomem seus produtos devem ter alguma participação também, na mesma proporção que são afetados. Uma vez que se tente expressar estes simples pontos, a lição óbvia é que:
1) As decisões freqüentemente se diferem por razão do quanto elas afetam diferentes indivíduos ou grupo de indivíduos. E
2) Como resultado, a regra do “cada pessoa, um voto - vencendo a maioria”, ou a regra de quem tiver dois-terços dos votos vence, ou o consenso, ou a ditadura, ou qualquer forma particular de tomada de decisão, são meramente alternativas táticas para a implantação de algum modelo mais geral num contexto específico, ao invés de um fim em si mesma. Então, disso também resulta que:
3) Endeusar um único método de tomada de decisão e considerá-lo aplicável em qualquer situação – o sistema de voto direto, ou consenso, ou um poder ditatorial para uma pessoa – significa não considerar que diferentes abordagens para distribuir as tomadas de decisão influenciam a adaptação em diferentes situações, mesmo se nós estivermos tentando executar o mesmo modelo.
Então, o que nós realmente precisamos não é colocar algum método de tomada de decisão sobre todos os outros, mas escolher nossos métodos de tomada de decisão baseados em quão apropriados eles são, para melhor executar um modelo escolhido no contexto específico que nós enfrentamos.
Mas qual modelo nós devemos almejar? Assumindo que nós respeitamos todos os envolvidos, quando decidimos espontaneamente como tomar decisões específicas na vida cotidiana, nós automaticamente tentamos dar a cada agente uma participação proporcional ao grau que ele é afetado. Nós não temos um amigo que decide qual é o filme que todos vão ver, e nós também não fazemos simplesmente uma votação. Todos amigos têm o poder de dar sua opinião, e se alguém já tiver visto o filme ou tiver alguma outra necessidade urgente, essa pessoa pode ter maior poder de decisão sobre isso. E enquanto nós não pudermos atingir de forma perfeita um nível de autogestão, no qual todos tenham participação nas tomadas de decisão de forma exatamente proporcional ao grau que são afetados pelas conseqüências, nós sabemos por intuição que qualquer desvio desses meios fará com que ao menos uma pessoa tenha um impacto excessivo nas decisões e que esteja sendo negada a justa porção de impacto a pelo menos uma outra pessoa.
Certamente, algumas vezes existem razões para violar a participação proporcional de todos. Suponha que haja um repentino anúncio que uma grande onda esteja vindo em nosso rumo. Um de nós é um especialista em sobrevivência nessa situação e o resto das pessoas da cidade nada sabe sobre a questão. Uma rápida mudança para uma “ditadura” é prudente nesse caso. Mas este critério não anula nossa tendência natural de defender a participação nas tomadas de decisão, de forma proporcional aos efeitos causados, como nosso modelo guia para uma boa economia? Isso sugere que temos que adotar, ao invés disso, como muitos defenderiam, a participação nas tomadas de decisão de acordo com o conhecimento relevante ao assunto e a qualidade das decisões que nós esperamos que uma pessoa atinja? Vamos ver.
Conhecimento e Decisões
Esta reorganização irá depender, acima de tudo, da completa familiaridade do trabalho com a situação econômica do país; de um completo estoque de abastecimento, de um conhecimento exato das fontes de matéria prima, e de uma organização própria das forças produtivas para uma gestão eficiente.
-Alexander Berkman
O conhecimento relevante para as decisões vem de duas formas.
1) Existe o conhecimento do caráter das decisões, do seu contexto e de suas implicações mais comuns. E
2) Há também o conhecimento de como cada pessoa percebe estas implicações e, especificamente, como elas dão valor às diversas alternativas.
O primeiro tipo de conhecimento é, freqüentemente, bastante especializado, como no caso do herói da grande onda que tem o completo domínio sobre esse conhecimento. Mas o segundo tipo de conhecimento é sempre disperso, uma vez que nós somos, cada um, individualmente, os maiores especialistas do mundo, considerando nossas próprias avaliações. Eu sei bem que eu não quero me afogar. Eu sou o maior especialista do mundo, segundo as minhas avaliações dos impactos das situações sobre mim. Você está considerando a si mesmo. Shawn, Sally, Sue, Sam e Samantha estão considerando a eles próprios. Agora, pode ser que Sally também seja a maior especialista do mundo em algumas situações de características e valores mais comuns... mas isso é diferente de como ela ou eu nos sentimos a respeito dos efeitos mais comuns destas situações sobre ela ou sobre mim.
Portanto, sempre que as decisões de conhecimento especializado, relativas a algumas questões, puderem ser difundidas o suficiente para que cada agente tenha condições de avaliar a situação e ter sua própria visão, de como ele é afetado em um longo tempo, para expressar isso na decisão, cada agente deve ter participação proporcional aos efeitos que ele irá sofrer. Sempre que isso for impossível por alguma razão, e os prejuízos por se cometer um erro forem grandes, nós provavelmente precisaremos funcionar por algum tempo de acordo com um modelo diferente, que transfira temporariamente a autoridade, ainda que dentro de meios que não subvertam permanentemente nosso objetivo prévio de autogestão. Obviamente, nesse caso, o objetivo está se afastando daquilo que é mais desejável, e a conclusão sobre a necessidade de se distribuir conhecimento para permitir a autogestão é evidente.
Em suma, o fato de você ser um químico e entender a química e a biologia de uma camada de tinta numa parede e os efeitos que ela pode ter, e de eu ser um pintor ou um fabricante de carros e não entender a química envolvida nesse processo, e tendo eu apenas as informações que você transmite, isso não significará que sua opinião vai ter um peso maior, na tomada de decisão, quando formos decidir se minhas paredes terão que ser pintadas, ou se toda a nossa comunidade quer ou não a pintura. Isto significa, de qualquer forma, que os meus companheiros membros da comunidade e eu, devemos ouvir o seu depoimento de especialista antes de tomar uma decisão. Você é uma fonte de informação importante, certamente, mas na tomada de decisão em si, você se torna como todos os outros. No que diz respeito ao fornecimento de informação, você é um especialista, mas na própria decisão, você terá uma participação proporcional aos efeitos sofridos por você, assim como nós, que teremos uma participação proporcional aos efeitos que recairão sobre nós.
Conselhos e Outras Implicações
A organização dos conselhos, portanto, tece uma diversificada rede de corpos cooperativos no seio da sociedade, regulando sua vida e progresso de acordo com sua livre iniciativa. E tudo aquilo que é discutido e decidido nos conselhos extrai o seu poder efetivo da compreensão, da determinação, da ação da humanidade laboriosa.
-Anton Pannekoek
Ouça, Revolução, nós somos companheiros, veja - Juntos, nós podemos tomar tudo: Fábricas, arsenais, casas, navios, ferrovias, florestas, campos, pomares, linhas de ônibus, telégrafos, rádios (Jesus! Atinja o inferno com as rádios!), fábricas de aço, minas de carvão, poços de petróleo, gás, todas as ferramentas de produção, (um grande dia pela manhã). Tudo - E entregá-los às pessoas que trabalham. Ordená-los e administrá-los para nós, as pessoas que trabalham.
-Langston Hughes
Assim, o objetivo da autogestão é que cada agente influencie as decisões proporcionalmente ao quanto ele é afetado, sendo entendido como um problema, o fato de se dar a alguns agentes, participação em demasia e a outros, pouca participação. Para chegarmos à autogestão e fazermos com que as decisões sejam satisfatórias, cada agente deve ter fácil acesso às avaliações relevantes dos resultados esperados, e deve ter conhecimento geral e segurança intelectual suficientes para entender as avaliações e desenvolver suas preferências sob sua luz. A organização da sociedade deve garantir que as fontes das análises, que tenham relação com a tomada de decisão, sejam imparciais, diversas e bem testadas. Portanto, para a autogestão, cada indivíduo ou grupo envolvido numa decisão deve possuir meios organizacionais para ter sucesso e tornar suas vontades conhecidas, assim como meios para controlá-las de maneira sensata, com suas contribuições bem-informadas, tendo a influência proporcional adequada.
Numa economia, para atingir a dita autogestão, nós precisamos de várias instituições (as quais nós chamamos de conselhos de trabalhadores e consumidores) para servirem como veículos de tomada de decisão para coletivos de trabalhadores e consumidores de diferentes tamanhos. Dessa forma, conselhos de grupos-de-trabalho, distribuição, locais de trabalho, indústrias e grupos de convivência, vizinhanças, comunidades e municípios, são necessários como veículos para que aqueles afetados pelas decisões expressem suas preferências individuais e grupais sobre estas decisões, decidindo suas prioridades, implementando resultados, etc. Nós também precisamos de uma difusão das informações que forneça o conhecimento necessário para que todos aqueles que sejam afetados pelas interações econômicas, possam julgá-las. Também é necessário que cada agente possua uma segurança pessoal, e que seja suficientemente capacitado para que se sinta confortável resolvendo, expressando, argumentando em benefício, e escolhendo suas preferências. E, finalmente, nós precisamos de meios de distribuição, de organização no local de trabalho e de outras interações institucionais que respeitem e promovam o modelo da autogestão e cumpram as exigências de difundir informação e de fortalecer os trabalhadores.
Existem muitas implicações institucionais no esforço para que a influência na tomada de decisão seja feita de forma proporcional às conseqüências sofridas, e discernindo até das implicações mais importantes deste modelo, quando aplicado. Mas o modelo, em si mesmo, é honesto. No próximo capítulo, nós mostramos um programa de exigências e ações que visam encorajar a autogestão econômica. Os próximos capítulos contêm assuntos adicionais que visam esse objetivo, como a organização nos locais de trabalho e como ocorre a distribuição.

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