O estupro é terrivelmente comum em conflitos em todo o mundo
Pouco depois de dar à luz o sexto filho, Mathilde foi com o bebê para os campos para fazer a colheita. Ela viu dois homens se aproximarem, usando o que parecia ser o uniforme da FDLR, uma milícia de Ruanda. Ao fugir, encontrou outro homem, que golpeou sua cabeça com uma barra de ferro, caiu ao chão com o bebê e ficou imóvel. Talvez pensando tê-la matado, o homem foi embora. Os outros dois vieram e a violentaram, depois a abandonaram como morta.
A história de Mathilde é muito comum. O estupro na guerra é tão antigo quanto a própria guerra. Após o saque de Roma, há 16 séculos, Agostinho chamou o estupro em tempo de guerra de um “mal antigo e costumeiro”. Para os soldados, há muito tem sido um espólio de guerra. Antony Beevor, historiador que escreveu sobre estupros durante a ocupação soviética da Alemanha, em 1945, diz que a violação pode ocorrer na guerra tanto por obra de soldados indisciplinados quanto como arma estratégica para humilhar e aterrorizar, como no caso das Forças Regulares de marroquinos que lutaram sob as ordens de Franco na Guerra Civil Espanhola.
Conforme o registro dos estupros foi aperfeiçoado, a escala do crime tornou-se mais visível . Com a Guerra da Bósnia, na década de 1990, reconheceu-se o uso sistemático do estupro como arma de guerra e da necessidade de puni-lo como crime hediondo. Com campanhas globais e a resolução oficial nesse sentido do Conselho de Segurança da ONU, em 2008, o mundo sensibilizou-se.
Teoricamente, as convenções de Genebra sobre tratamento dos civis durante a guerra são respeitadas por políticos e generais na maioria dos países civilizados. Mas no caos da guerra irregular, com exércitos privados ou milícias indisciplinadas, essas normas têm pouco peso.
A parte oriental do Congo tem sido caótica desde o genocídio em Ruanda, em 1994. Em 2008, o grupo humanitário Comitê de Resgate Internacional (IRC, em inglês) estimou que 5,4 milhões de pessoas já tinham morrido na “guerra mundial da África”. Apesar dos acordos de 2003 e 2008, a violência ainda não cessou.
Há muitos números sobre quantas mulheres foram violadas, nenhum conclusivo. Em outubro de 2010, Roger Meece, chefe das Nações Unidas no Congo, disse ao Conselho de Segurança da ONU que 15 mil mulheres tinham sido estupradas em todo o país em 2009 (os homens também sofrem, mas a maioria das vítimas é de mulheres). O Fundo para a População da ONU estimou 17,5 mil vítimas no mesmo período. O IRC diz que tratou 40 mil sobreviventes somente na província de Kivu Meridional, entre 2003 e 2008.
Hillary Margolis, que dirige o programa de violência sexual do IRC, diz que esse dado representa um piso. Os verdadeiros números podem ser muito maiores. Sofia Candeias, que coordena o projeto Acesso à Justiça do Programa de Desenvolvimento da ONU no Congo, diz que violações são mais relatadas em lugares com serviços de saúde. Onde a luta é mais acirrada, as mulheres podem ter de caminhar centenas de quilômetros antes de contarem a alguém que foram atacadas e, até lá, podem ter-se passado meses ou anos. Muitas vítimas são mortas pelos atacantes, ou morrem dos ferimentos causados. Muitas não relatam o estupro por causa do estigma.
Um estudo recente da Iniciativa Humanitária de Harvard e da Oxfam examinou sobreviventes no Hospital Panzi, em Bukavu, cidade de Kivu Setentrional. Com idades de 3 a 80 anos, solteiras, casadas ou viúvas, de todas as etnias, foram estupradas em casas, campos e florestas, na frente dos maridos e dos filhos; quase 60% violadas por grupos. Filhos foram obrigados a violar as mães ou seriam mortos.
O tabu que cerca o estupro é tão forte que poucos casos foram relatados pela história; evidências antes do século XX são escassas. Com um melhor registro, o mundo despertou para a escala do crime. Tornou-se visível o sequestro de mulheres como escravas sexuais, tortura e mutilação sexualizadas, estupro em público ou privadamente.
Não é só um problema africano. De 1980 a 2009, segundo Dara Kay Cohen, da Universidade de Minnesota, nos EUA, um terço das 28 guerras civis da África e metade das nove guerras na Europa Oriental tiveram altos níveis de estupro e nenhuma parte do mundo escapou à praga.
As condições da guerra são propícias: homens jovens e mal treinados, lutando longe de casa, livres das restrições sociais e religiosas. Para combatentes mal alimentados e remunerados, pode ser uma espécie de pagamento. Conforme as guerras passaram dos campos de batalha para as aldeias, mulheres e meninas ficaram mais vulneráveis. O front doméstico não existe mais; toda casa é a linha de frente.
Por outro lado, na guerra civil de El Salvador, o estupro foi raro e quase sempre praticado pelas forças do Estado. As milícias de esquerda contavam com o apoio dos civis. Pode-se estuprar para aterrorizar pessoas ou obrigá-las a abandonar uma área, diz Elisabeth Wood, professora na Universidade de Yale e no Instituto Santa Fé, mas não quando se quer obter delas informações confiáveis ou governá-las no futuro.
Alguns grupos cometeram todo tipo de atrocidade, menos o estupro, como foi o caso dos Tigres Tâmeis, que expulsaram dezenas de milhares de muçulmanos da Península de Jaffna, em 1990. Os costumes tâmeis proíbem o sexo entre pessoas que não são casadas e de diferentes castas. Além disso, explica Wood, a estrita disciplina interna da organização permitia aos comandantes aplicar essas regras.
Alguns líderes, como Jean-Pierre Bemba, chefe de milícia do Congo hoje julgado por crimes de guerra em Haia, diz não ter pleno controle de suas tropas. Mas um comandante com controle suficiente para dirigir soldados em operações militares pode impedir que cometam estupros, afirma Wood.
Permiti-los é um meio de dominar inimigos e civis sem correr o risco da batalha. Diante do estupro, os civis fogem e deixam terras e propriedades para os atacantes. Em agosto de 2010, milícias rebeldes violaram cerca de 240 pessoas durante quatro dias no distrito de Walikale, leste do Congo. Os motivos não são claros. Pode ter servido para intimidar a população a fornecer ouro e estanho das minas próximas. Ou, talvez, um comando local do exército tivesse um conluio com os rebeldes para não ser substituído e perder o controle da área e de seus recursos. Em Walikale, pelo menos, o estupro parece ter sido uma tática deliberada, e não aleatória, diz Margolis.
No pior dos casos, o estupro é um instrumento de limpeza étnica e genocídio, como na Bósnia, em Darfur e Ruanda. Foi na Bósnia que a violação foi reconhecida pela primeira vez como arma de guerra. Todos os lados o praticaram, mas a maioria das vítimas era de bósnio- muçulmanas atacadas por sérvios. Eram conduzidas a “campos de estupro” e violentadas repetidamente, em geral por grupos de homens. Esses horrores surgiram nas audiências do Tribunal de Crimes de Guerra da ex-Iugoslávia, em Haia; as vítimas testemunharam por escrito ou anonimamente. Alguns disseram ter recebido ordens para estuprar, visando expulsar os não sérvios de certas áreas ou forçar mulheres a terem filhos sérvios. Em 1995, quando croatas invadiram áreas detidas pelos sérvios, houve violência sexual contra mulheres e homens.
Na região sudanesa de Darfur, a violência sexual também é uma maneira de aterrorizar e controlar os civis. As mulheres são violadas nos campos de refugiados, principalmente quando se afastam para recolher lenha, água e comida. As da mesma etnia dos dois principais grupos rebeldes foram visadas, principalmente, como parte da campanha de limpeza étnica.
Segundo a Human Rights Watch, o estupro é cronicamente mal documentado, em parte porque na região, de maioria muçulmana, a violência sexual é um tema delicado. Entre outubro de 2004 e fevereiro de 2005, a organização francesa Médicos Sem Fronteira tratou quase 500 mulheres e meninas no sul de Darfur. O número real deve ser muito maior.
No genocídio de Ruanda, o estupro foi “a regra, e sua ausência a exceção”, segundo a ONU. Nas semanas anteriores às matanças, os jornais hutus publicaram charges mostrando mulheres tútsi tendo sexo com soldados das forças de paz belgas, tidas como aliadas da Frente Patriótica de Ruanda de Paul Kagame. Para Inger Skjelsbæk, vice-diretor do Instituto de Pesquisa da Paz em Oslo (Noruega), a propaganda hutu sugeriu que a causa tútsi seria bem servida pela violação sexual de mulheres hutus. Jens Meierhenrich, observador em Ruanda da Escola de Economia de Londres, diz que mesmo que os comandantes de alto nível não ordenassem a violação, lhes davam aprovação tácita. Oficiais de patente mais baixa podem ter incentivado abertamente o crime.
Do horror de Ruanda veio o primeiro veredicto legal que reconheceu o estupro como arma de genocídio. Depois da condenação de Jean Paul Akayesu, um político local, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda o declarou parte integrante da iniciativa para eliminar o povo tútsi.
Cohen diz que grupos armados que não são socialmente coesos, ainda mais quando os combatentes foram recrutados à força, têm maior probabilidade de cometer estupros, especialmente em grupo, de modo a construir laços internos. Um caso é a Frente Revolucionária Unida de Serra Leoa (RUF): seus milicianos, que na maioria dizem ter sido sequestrados para suas fileiras, violentaram milhares durante a guerra civil.
Para as vítimas e suas famílias, a violação causa o oposto. A vergonha e a degradação destroem os laços sociais. Nas sociedades onde a honra de uma família repousa na pureza sexual de suas mulheres, a culpa pela desonra muitas vezes não recai nos estupradores, mas nas vítimas. Em Bangladesh, onde a maioria das vítimas era muçulmana, a violação não humilhou apenas a elas, mas também a suas famílias e comunidades. O então primeiro-ministro Mujibur Rahman tentou combater isso tratando-as como heroínas que precisavam de proteção e reintegração. Alguns homens aceitaram, a maioria não; exigia compensações na forma de pagamento de dotes pelas autoridades.
No Congo, apesar dos esforços de ativistas, a violação ainda acarreta desonra para a vítima, diz Margolis: “As pessoas podem se sentar e conversar em abstrato sobre a importância de abolir o estigma, mas, quando se trata de suas próprias esposas, filhas ou irmãs, a história é outra”. Muitas são rejeitadas pelas famílias e estigmatizadas.
Há pouca perspectiva de justiça para as vítimas. Akayesu é um dos poucos julgados por estupro em guerra, crime que, embora proibido pelas convenções de Genebra, muitas vezes recebeu relativamente pouca atenção. O tribunal para os crimes nos Bálcãs inovou ao tratar o estupro como crime contra a humanidade e a condenação de três homens por estupro, tortura e escravização sexual de mulheres na cidade bósnia de Foca foi um grande marco.
Mas no Congo o sistema jurídico está destroçado. Houve menos de 20 processos de estupro como crimes de guerra ou contra a humanidade. A associação dos advogados dos Estados Unidos, que ajuda as vítimas a levar seus casos aos tribunais do leste do Congo, processou perto de 145 casos nos últimos dois anos. Isso resultou em cerca de 45 julgamentos e 36 condenações pelas leis locais, incluindo a que foi aprovada em 2006 para julgar e abordar o problema da violência sexual.
Os que trabalham com sobreviventes de violação no Congo têm sentimentos contraditórios sobre a lei de 2006. Ela despertou a consciência das pessoas sobre seus direitos, admite Margolis, e teoricamente ajuda a punir os criminosos. Mas para as mulheres teve pouco impacto. “Ainda tem um brilho de esperança nos olhos quando falam da lei. Mas, se os sistemas jurídicos e de segurança não forem aperfeiçoados para aplicá-la, perderão a confiança nela”, diz Margolis.
Enormes problemas práticos prejudicam o sistema legal do Congo, diz Richard Malengule, diretor do programa de Gênero e Justiça da Heal Africa, um hospital em Goma. As pessoas têm de caminhar 300 quilômetros para chegar a um tribunal. A polícia não tem dinheiro nem treinamento. Os presos muitas vezes fazem um acordo com a família da vítima ou com o tribunal e são libertados em poucos dias, ou escapam. Muitas prisões não têm porta ou têm guardas corruptos.
Alguns querem maior envolvimento internacional. Justine Masika, que dirige uma organização em Goma que busca justiça para as vítimas de crimes sexuais, disse que os tribunais do Congo têm de trabalhar com os internacionais. Mas tais tribunais “híbridos” exigem envolvimento do governo, que não se dedica a combater o estupro. O Tribunal Penal Internacional está investigando crimes, incluindo estupro, no Congo, mas é difícil reunir as provas necessárias.
Aumentar a consciência global é outro caminho; ajuda a reduzir o estigma. Várias resoluções da ONU nos últimos dez anos condenaram a violência sexual contra mulheres e meninas e pediram aos países mais ações para combatê-la. Mas não basta.
Pior, a ONU enfrentou críticas por deixar de proteger as congolesas da violação. Em Walikale, um de seus funcionários receia que o órgão não tenha cumprido sua obrigação de proteger as civis. Em lugares mais remotos é difícil as forças de paz alcançá-las, mas nesse caso isso não explica o fiasco. “Todas essas entrevistas e investigações, o que conseguiram? As sobreviventes são entrevistadas diversas vezes. Aonde isso as leva?”
Sem a ONU, as atrocidades seriam ainda mais generalizadas, diz Malengule. Mas é preciso mais pressão sobre o governo do Congo, que, hoje, lamenta um trabalhador humanitário, só recebe censuras vazias.
Mesmo quando as guerras terminam, o estupro continua. Agências humanitárias no Congo relatam altos níveis de violações em áreas hoje pacíficas, mas é difícil avaliar cifras. Não há números de antes da guerra e uma maior disposição para relatar violações pode explicar o aparente aumento. Mas anos de combates resultaram em uma cultura de estupro e violência, diz Malengule. Os esforços para integrar ex-combatentes na sociedade foram superficiais e malsucedidos, com pouca avaliação de resultados.
Some-se o precário sistema judiciário e a previsão é sombria. É ainda mais inóspita quando se vê como os efeitos do estupro são duradouros. Rebeldes tomaram a aldeia de Angelique, em 1994. Degolaram seu marido, depois a amarraram entre duas árvores com os braços e as pernas afastados. Sete homens a estupraram antes que ela desmaiasse. Ela não sabe quantos outros a violaram em seguida. Depois eles enfiaram galhos em sua vagina. O tecido entre sua vagina e o reto foi rasgado e ela desenvolveu uma fístula. Durante 16 anos vazou urina e fezes. Agora recebe tratamento médico, mas a justiça é um sonho distante.
#FimdaViolenciaContraMulher
#FimdaViolenciaContraMulher
Depois de ver seu blog, acredito que você terá um enorme prazer, como eu tive, em denunciar esses retardados:
ResponderExcluirhttp://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=97271732
Beijo,
Antônio Hezir